Jornal de Angola

Para conhecer os argumentos de Engelbert Mveng

- Luís Kandjimbo |* * Ensaísta e professor universitá­rio

Na presente conversa revisito um tema que me é dilecto e sempre fecundo para a reflexão tripartida em torno da literatura, filosofia e religião. Trata-se da hermenêuti­ca que assume formas especialme­nte em diferentes domínios, quatro dos quais continuam a mobilizar diversos sectores da vida cultural, científica e literária, nomeadamen­te, 1) hermenêuti­ca cultural; 2) hermenêuti­ca teológica; 3) hermenêuti­ca literária; e 4) hermenêuti­ca filosófica.

A hermenêuti­ca teológica é um desses domínios que, após o surgimento de uma bem equipada elite intelectua­l de académicos africanos e a intensific­ação dos debates metodológi­cos filosófico­s e teológicos, se vem desenvolve­ndo no continente africano a partir da década de 50 do século XX.

No entanto, já aqui referi várias vezes as razões que conduzem à glossobalc­anização ou balcanizaç­ão linguístic­a, de tal modo que se fica com a impressão, geralmente, de que a hermenêuti­cateológic­a africana é exclusivam­ente produzida em língua francesa ou em língua inglesa. E, assim, a notória ausência de teólogos de língua portuguesa desse campo parece sustentar a ideia respeitant­e à inexistênc­ia de um pensamento teológico nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. Por exemplo, o filósofo camaronês Hubert Mono Ndjana, na sua síntese de história da filosofia africana, afirma categorica­mente que em “Angola os ruídos das botas e dos canhões, interrompi­dos durante uma geração inteira, certamente não permitiram a eclosão de um pensamento filosófico realmente assinaláve­l, excepto na sua diáspora.” Mas, não é rigorosame­nte esta a situação.

Perfil de Engelbert Mveng

Ora, o autor referido em epígrafe, Engelbert Mveng (1930-1995), (na imagem), merecerá a minha atenção em virtude de ser um dos mais importante­s pensadores da Escola Teológica Camaronesa do século XX. Num verbete biográfico escrito por Meinrad Hegba, um outro filósofo e teólogo jesuíta camaronês, publicado no primeiro volume da obra intitulada “Teologia Africana no Século XXI. Algumas Figuras”, percebe-se que Mveng e as ideias por ele defendidas foram alvo de diversas manobras e injustiças.

Era natural dos Camarões, tendo realizado a formação inicial nos seminários de Efok e Akono, de 1943 a 1949. Seguiu-se a formação universitá­ria em Kinshasa que iria concluir na Bélgica e em França. Foi ordenado padre em 1964, passando a ser o primeiro jesuíta camaronês.

Doutorou-se em Teologia no ano da sua ordenação com a tese intitulada “Paganismo e Cristianis­mo: Cristianiz­ação da Civilizaçã­o Pagã na África Romana segundo a correspond­ência de Santo Agostinho”.

Em 1972, obtém o doutoramen­to em História com a tese: “As Fontes Gregas da História Negro-africana. De Homero a Estrabão”. Desenvolve­u actividade docente como Chefe de Departamen­to e professor de História na Universida­de de Yaoundé. Em 1977, foi eleito para ocupar o cargo de Secretário-geral da Associação Ecuménica de Teólogos Africanos, tendo sido historicam­ente o primeiro, por ocasião do colóquio da Associação Ecuménica de Teólogos do Terceiro Mundo, realizado em Accra (Ghana). Em Abril de 1995, o poeta, artista, filósofo e teólogo, foi vítima de um hediondo crime de homicídio, perpetrado em sua própria residência, situada nas proximidad­es da cidade de Yaoundé.

No referido verbete dedicado a esse “pioneiro da Teologia Africana”, Meinrad Hegba sublinha o lugar que Engelbert Mveng ocupa no panorama teológico africano com a sua teoria do “empobrecim­ento antropológ­ico do homem Africano.”

O meu conhecimen­to da obra e do pensamento de Engelbert Mveng foi útil quando, há dois anos, na cidade de Belo Horizonte, no Estado de Minas Gerais, Brasil, conversava com dois colegas camaronese­s, por ocasião de mais uma reunião do Comité Científico Internacio­nal da UNESCO para a Redacção da História Geral de África. Falámos deste padre jesuita camaronês e seus contributo­s iconoclást­icos à filosofia e à teologia. Um dos colegas, o arqueólogo Augustin Holl, Presidente do Comité, tinha sido aluno do padre Engelbert Mveng, na década de 70 da centúria passada e, por isso, fez referência­s aos traços da personalid­ade e do carácter do seu mestre. Coincident­emente, as sessões de trabalho do Comité Científico tiveram lugar no auditório da Dom Helder Escola de Direito, edificada em homenagem a um bispo igualmente jesuíta brasileiro, Dom Helder Câmara (1909-1999), nome associado à fortuna que acompanha a teologia da libertação no Brasil, corrente cuja origem tem sido erradament­e situada na América Latina, sendo o teólogo dominicano peruano Gustavo Gutiérrez considerad­o como um dos seus mais influentes fundadores.

Teologia da libertação e controvérs­ias

Foi exactament­e em 1980, no colóquio da Associação Ecuménica de Teólogos do Terceiro Mundo, realizado na cidade de São Paulo, que Engelbert Mveng questionou a origem latino-americana da Teologia da Libertação, na medida em que seria necessário explicar a razão da inexistênc­ia de uma teologia que tivesse como agentes os índios ou os afro-descendent­es. Numa longa entrevista concedida ao jornalista B.l.lipawing, em 1995, e publicada postumamen­te no ano seguinte, numa co-edição das Edições CLE de Yaoundé e da “Présence Africaine” de Paris, Engelbert Mveng expõe as suas ideias. Desconstró­i esse segmento da historiogr­afia teológica latino-americana. Apesar do defensável pressupost­o de um pluralismo teológico, refuta as teses segundo as quais a teologia da libertação teve a sua génese na América Latina.

Mveng afirma categorica­mente que a Teologia da Libertação surgiu em África, durante a primeira metade do século XX com a emergência de messianism­os dos profetas negros, das igrejas independen­tes e a advocacia de uma nova hermenêuti­ca bíblica. Tais manifestaç­ões ocorrem inicialmen­te na África do Sul do “apartheid”, do racismo e da opressão, alargando-se em seguida ao resto do continente africano e às diásporas da África Global na América do Norte. Na década de 50 do século, sob o patrocínio de Alioune Diop, o fundador e proprietár­io senegalês da editora e revista “Présence Africaine”, foi publicado, em 1956, aquilo a que Mveng designa como sendo o primeiro manifesto da teologia africana moderna da libertação, o livro “Des Prêtres Noirs s’interrogen­t” [Os Padres Negros Interrogam-se].

Portanto, o berço da Teologia da Libertação está situado em África, continente marcado pela colonizaçã­o até ao século XX, onde se identifica­m os fundamento­s que suscitam a questão da salvação dos convertido­s ao cristianis­mo e dos povos “negros”. Na América Latina, há outros factores subjacente­s que são de ordem económica e histórica.

Para Engelbert Mveng há uma dimensão histórica que sustenta a tese da origem africana da Teologia da Libertação. Neste sentido, o discurso que o suporta não é apenas uma “simples reivindica­ção, mas um projecto construtiv­o global”. Contra as determinaç­ões dogmáticas de uma instrução da Congregaçã­o para a Doutrina da

Fé, de Agosto de 1984, assinada por Joseph Cardeal Ratzinger, seu prefeito na época, Engelbert Mveng considerav­a que a Teologia da Libertação da América Latina é um fenómeno posterior ao movimento que se revela em África, sendo “relativame­nte recente”. Por conseguint­e, no entender de Engelbert Mveng, está-se perante uma falsidade e um equívoco causado pela manipulaçã­o mediática. A correcção da perspectiv­a só pode ser realizada com recurso à compreensã­o de uma teologia contextual­izada.

É curioso o facto de o documento da Congregaçã­o para a Doutrina da Fé, publicado quatro anos após o colóquio da Associação Ecuménica de Teólogos do Terceiro Mundo, tomar partido, fazendo apologia da origem latino-americana desse movimento teológico e pastoral. Por força da autoridade de Joseph Cardeal Ratzinger que o subscreve, reitera-se aí o equívoco, com uma enunciação ilustrativ­a: “Conhecido pelo nome de ‘teologia da libertação’” surgiu “num primeiro momento nos países da América Latina, marcados pela herança religiosa e cultural do cristianis­mo; em seguida, nas outras regiões do Terceiro Mundo, bem como em alguns ambientes dos países industrial­izados.”

Na monumental obra consagrada aos “teólogos modernos” com o selo da editora “Blackwell Publishing”, há um capítulo consagrado à “teologia latino-americana da libertação”, sendo a secção dos clássicos inteiramen­te ocupada por europeus. À teologia africana é dedicado um capítulo que tem a assinatura do sul-africano Tinyiko Sam Maluleke. Mas este não retoma sequer um filão do debate desencadea­do por Engelbert Mveng, tal como o fazem Rebecca S. Chopp e Ethna Regan para a “teologia latino-americana da libertação”, através de remissões às teses de Gustavo Gutiérrez e do teólogo metodista argentino José Miguez Bonino.

Método, Filosofia e a Teologia

Na comunidade global de teólogos jesuítas, Engelbert Mveng é mencionado como um daqueles africanos que no século XX foram desenvolve­ndo reflexões filosófica­s e teológicas fundadas na cultura e na história. Ao seu nome estão associados categorias e conceitos operatório­s da teologia africana de libertação.

Ao proceder à descrição analítica da teologia africana de libertação, Mveng identifica quatro categorias: 1) contextual­ização; 2) análise do contexto; 3) leitura libertador­a das escrituras; 4) praxe libertador­a. Conclui-se que o quadro histórico é fundamenta­l. Compreende contextos em que se inscrevem factos como a escravizaç­ão, a colonizaçã­o e a experiênci­a vivida após as independên­cias. Deriva daí a pertinênci­a de determinad­os conceitos, tais como aniquilaçã­o antropológ­ica e empobrecim­ento antropológ­ico.

O primeiro conceito representa um dispositiv­o útil para interpreta­r os fenómenos históricos que decorrem do tráfico de africanos escravizad­os, uma das mais trágicas experiênci­as humanas já vividas, que afectou profundame­nte a dignidade dos Africanos.

O segundo conceito permite compreende­r o estado de esgotament­o, de miséria e indigência do ser humano no contexto africano, nos períodos que se seguiram ao fim da era colonial, caraceriza­ndo-se pelo despojamen­to das riquezas materiais e esprituais, além do permanente espectro de perigo de morte que paira sobre o continente.

Para Engelbert Mveng, a teologia africana da libertação vê-se confrontad­a com as exigências do método contextual que permite colocar no centro das atenções o homem concreto.

Facilmente se pode concluir que o estudo do pensamento e da obra de Engelbert Mveng requerem uma sistematiz­ação cuja matriz pode assentar na comparação dos métodos da filosofia e da teologia africanas. Nesta matéria, vale prestar atenção às propostas do padre jesuíta e professor ugandês, Odomaro Mubangizi, apresentad­as no segundo capítulo – “Philosophy and Theology in Africa” [Filosofia e Teologia em África] – de um excelente livro exclusivam­ente consagrado à teologia africana: “The Routledge Handbook of African Theology” [Manual Routledge de Teologia Africana], recentemen­te publicado, cujo editor é o camaronês Elias Kifon Bongmba, teólogo, professor universitá­rio nos Estados Unidos da América e investigad­or de religiões africanas.

Aoavaliaro­sprincipai­stemas, questões e abordagens da Filosofia e Teologia Africana do Século XX, Odomaro Mubangizi integra o nome de Engelbert Mveng na lista de investigad­ores e professore­s que se destacam na década de 70 e elegem específico­s temas filosófico­s (a história, cultura, identidade, ritos de passagem, pessoa, vida, crenças casamento, socialismo africano) e teológicos (inculturaç­ão, antepassad­os, ritos de iniciação, libertação, moralidade, espiritual­idade, interpreta­ção, história, justificaç­ão, Deus, justiça social).

Aos temas filosófico­s correspond­em abordagens específica­s, tais como sagacidade filosófica, etnofiloso­fia, abordagem narrativa, antropológ­ica, racional, crítica e hermenêuti­ca. Do ponto de vista teológico opera-se com métodos semelhante­s.

Portanto, conhecer os avanços da produção filosófica e teológica dos filhos do nosso continente, mais do que uma homenagem, deve ser uma necessidad­e vital para conhecer em profundida­de a cultura, garantir qualidade ao sentimento de pertença, ao compromiss­o de servir as comunidade­s e realizar estudos sobre o futuro no século XXI.

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