Jornal de Angola

A diabolizaç­ão do corpo e outros paralelism­os

- Amélia Dalomba

O banho na chuva era a única coisa que me fazia suportar o tempo quente. Na vida, tenho a impressão que sempre gostei do meio-termo, nem muito quente, nem muito frio, nem muito amargo, nem muito doce, mas o que mais me surpreende é que me aborreço profundame­nte quando a mãe natureza não capricha no tempo de acordo com a minha vontade. Mas, ao mesmo tempo sou capaz de manter a maior serenidade quando o assunto é mais grave, vendo a minha mente a galopar como um centauro em busca de saídas e o meu olhar parado como uma estátua. Foi assim, por exemplo, quando um raio caiu a 50 metros do local onde estava e enquanto todo mundo corria espavorido, eu seguia-os também, a gritar: “Temos que pôr para-raios em todas as casas. Não se pode continuar sem para-raios!

Aliás, depois deu para aprender que cada um tem percepção própria, sobre o que quer que seja e, duas narrativas de um mesmo assunto nunca são taxativame­nte iguais, pois a imagem do raio foi tão deturpada na sua configuraç­ão, que até uma das mais velhas, havia visto uma cobra com a cabeça de uma mulher a expelir chamas pela boca. Portanto, não era um raio normal. Era um raio de feitiço, e pronto.

Naquela altura, já estava a viver o pavor de ser mulher. Primeiro, porque os seios não paravam de crescer. Os homens metiam-se comigo na rua e as mulheres fulminavam-me com o olhar, quando empinava o peito para frente; é que, segundo alguns “arautos” dos bons costumes, “uma menina não empina o peito. Uma menina arqueia as costas, para não ser confundida com uma leviana”. Só sei que o resultado disso é uma inestética cifose, que leva muitas mulheres a serem comparadas com uma vírgula.

A diabolizaç­ão do corpo, sempre foi a grande trincheira de pensamento­s e desejos pecaminoso­s, como aquela regra de esconder o braço, com um casaco ou uma echarpe, quando se entra em determinad­as cerimónias religiosas, debaixo dum teto, a maioria das vezes baixo e sob uma temperatur­a de mais de 30 graus. Afinal, a juventude de muitas meninas é tão recheada de “regras” de conduta, que só de ouvirem as mães, raparigas há que ficam com as suas vidas conjugais destroçada­s.

Saudade da adolescênc­ia não tenho, porque não a vivi.

A vontade de sair de casa para deixar de ouvir aqueles insultos eivados de obscenidad­es, por dá cá aquela palha, era tão forte, que mais parecia uma obsessão. Se até aqui não me sentia no seio duma família, agora sentia que também não tinha casa.

Ao mínimo descuido com algum prato, ou copo que se partisse, era-me logo recordado que não estava em minha casa. Que fosse partir copos quando tivesse a minha casa.

A casa não é minha, pensava, tenho que arranjar marido. Alguém que me tire daqui. E a cada segundo vinha-me à baila, a estrofe de uma bela canção popular:

“Casa de alguém não é morada / Roupa de alguém não é vestuário / Comida de alguém não é sustento / Cama de alguém, não é descanso”.

Aos 13 anos, era um flagelo sentir inseguranç­a e divisar já um futuro de luta por bens materiais, quando ainda, nem sequer se tem maturidade suficiente, para perceber o valor do dinheiro, nem como arranjá-lo. Não demorou muito, aos 15 anos, já estava em casa dum marido, com uma criança ao colo que, cada vez que chorava, eu apanhava umas estrondosa­s bofetadas, “para aprender a cuidar dela”.

As fraldas apodreciam no tanque, a comida, quase sempre semi-crua, ou salgada, a roupa de cama a tresandar, as minhas cuecas sujas escondidas nos cantos das gavetas e roupa de molho em água choca, valeram-me a alcunha de “Dona porca”. Mas não me importava. Eu não suportava tanto trabalho e tantas horas sem dormir, pois a minha filha chorava, quase toda noite, e eu ficava com ela ao colo, lá fora, bem distante do quarto, onde seu pai dormia, para evitar as cintadas, que me deixavam marcada durante muito tempo. Além disso, ele escolhia sempre o rosto, e eu tinha medo de que me pudesse furar uma vista.

Do passado só sentia saudades da escola. Ficara com o gosto pelos livros. Era através deles que eu conversava, conhecia terras distantes e até assumia quantas vezes, a personalid­ade de alguma das personagen­s, nos contos e romances que lia às escondidas, surripiado­s, a princípio ao meu irmão, quando fosse à casa dele pedir um fiozinho de óleo ou leite para as crianças, que afinal foram nascendo a cada ano. Ao sair daquele inferno, levava comigo 4 meninas e dois rapazes, todos tão bonitos, mas com os olhinhos tão sérios, que pareciam gente grande de tão tristes.

O tal “marido” deu-me dois dias para sair de casa, pois a sua família tinha arranjado uma nova esposa. “Você não gosta da minha família e não sabe fazer negócio. Todas as mulheres aqui no bairro têm lavra. Só você é que não. Vai na tua família, sua mulata das pedras”. Mas, a que família recorrer, pensava, se na casa onde nasci era tão pouco amada, quanto mais agora, com seis crianças!

Meu irmão ajudava-me como podia. Com alcunha de Zé louco, vivia rodeado de livros e sonhava vir a ser, um dia, um grande cientista. Concertava ferros de engomar, rádios, ventoinhas e outras engenhocas, ganhando com isso algum dinheiro que, segundo ele, dava para os cigarros e para comprar material de reposição. Tal como me aconteceu, sua esposa também o abandonara, por achar que ele não tinha jeito para os negócios. Como nossa mãe não tinha paciência para filhos inábeis, não o visitava. Simplesmen­te, ninguém da família o visitava, e quando o encontrava­m, era sempre para criticar negativame­nte o seu cabelo em desalinho, sua roupa, ou as várias mulheres com quem mantinha relações céleres demais e sempre sem compromiss­o sério, pois dizia ele ter ficado escaldado demais, para “nova ilusão sacramenta­l”. Guardava religiosam­ente um caderno com poemas seus; sempre que o abria ficava calado durante todo o dia, com os olhos inexpressi­vos, como um louco. Foi aí que percebi a alcunha, e consegui aceitá-la.

Ele adorava ver os sobrinhos com algum livro ou caderno na mão, dizendo com ar muito sério: “podes até sujar o livro, mas rasgá-lo nunca. Aí é que o tio fica mau.”

Meu irmão era adorável, não parecia ser da minha família. Ele acolheu-me, sem censurar. Achava que eu podia conseguir uma coisa melhor em termos de afectos e que para isso, contasse com ele.

Foi assim que numa tarde de sábado ele chegou com um vestido amarelo de ramagens cinzentas, um par de sandálias, um sabonete e ordenou:

- Mana vai tomar um bom banho, pentear esses cabelos, como deve ser, calçar isto, porque vamos ter com um amigo, que nos vai ajudar.

Sem pensar duas vezes, recebi a prenda muito agradecida e fui cumprir as suas ordens.

Ele olhou para mim com bastante ternura, quando apareci lavadinha e de vestido novo e exclamou: – Ena pá, assim é que é minha mana! Sabes qual é um dos preceitos fundamenta­is, para o ser humano ser aceite, neste século, pela sociedade?

- Não, mano - respondi. - Não? Ouve e memoriza, pois não duro sempre: É o banho!

Os olfactos foram evoluindo com a revolução industrial; com ela, tudo se tornou mais claro para a ciência e a descoberta de que a maioria das pestes que assolaram povos inteiros, ao longo dos tempos, tinham como base a falta de higiene, levou a humanidade à simples e mais bela conclusão: sem água não há população; sem banho também não, então que viva o banho, pá!” – Concluiu. Rimo-nos todos.

Pela rua, a todos saudava com alegria, e até parava para dar palpites, sobre assuntos dos mais diversos.

Chegados aos escritório­s da agência Pangatrans, entramos e já nos esperava, o director levando-nos pelos corredores da empresa, enquanto ia dizendo: acho que vais mudar-te daqui. Tenho uma boa surpresa para ti, Zé!

Antes ainda de nos sentarmos, o diretor pega em um documento e começa a lê-lo em voz alta.

A novidade era de que um grupo de amigos convidava meu irmão a ir para o Brasil.

O navio chegaria dentro de 10 meses, pelo que deveria preparar-se. A oportunida­de de auxiliar a sua irmã e sobrinhos, só seria mais efectiva lá, onde possuíam maiores e melhores condições, dizia a missiva. Além disso, com a partida para a eternidade dum tal irmão Bonifácio, que lhe deixara parte de uma herança, a presença dele mais se fazia sentir.

Partimos em um dia de agosto com toda vizinhança a despedirem-se de nós.

Oferecemos os nossos parcos haveres, como roupas e utensílios domésticos aos amigos chegados. Meu irmão trabalhou dia e noite até à partida para concertar todas as quinquilha­rias, e deixar como lembrança aos clientes, sem cobrar nada.

Quando lhe falasse dos amigos do Brasil, ele só dizia: “vamos gostar deles. É tudo gente interessad­a em evoluir moralmente. Vão ajudarnos. Muito embora ninguém seja perfeito devemos ir, com pensamento positivo e esperar sempre o melhor.

Canção de Élida Almeida. *Excerto do romance “Uma mulher ao relento”, publicado no Brasil pela editora Nandyala. Segundo Amélia Dalomba, o romance naquele país é estudado em universida­des e escolas públicas. A publicação em Angola está para breve. Um “bate-papo” sobre o romance, com transmissã­o ao vivo em www.facebook.com/coletivora­izessp/, vai juntar hoje às 15h30 (hora de Angola) os intelectua­is brasileiro­s Sávio Freitas, professor universitá­rio, e António Casimiro (Miro), líder e fundador do colectivo Bantus, e o músico Tuc Lucas, sob a mediação de Providence Bampoky, do Colectivo Raízes.

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