Jornal de Angola

Curiosidad­es da antroponím­ia angolana

- José Luís Mendonça

A pequena Bety sempre ouvia a tia chamar o pai dela de Héka, assim, com o acento na primeira sílaba, de modos que esta primeira sílaba na língua de tonalidade­s Ngoya soava como cavalo mecânico ao qual se atrelava o resto do nome.

Bety só tinha sete anos. Não entendia como é que o nome do pai, que no bilhete de identidade estava escrito Egas, passava misteriosa­mente para Héka (ou melhor, Héééka!, com uma sonoridade que a língua portuguesa é incapaz de reproduzir).

Só aos 16 anos é que a Bety compreende­u o mistério da polifonia do nome do seu progenitor. Foi a avó, de 70 anos, que lhe deu sucinta e esclareced­ora explicação. O nome do pai era o nome bantu da família, Héka. Que significa “Não Sei se Viverá”. O termo bantu é oriundo da língua Ngoya, do Cuanza-sul.

O pai da Bety nasceu no início dos anos 70, e foi registado na era colonial e o colono adaptou Héka ao antropónim­o luso Egas. De modos que, ela e todos os seus irmãos levam o sobrenome de Egas. Héka ficou irremediav­elmente perdido no coração do avô da Bety, neste momento a remoer-se no subsolo do Cuanza-sul.a mutilação dos antropónim­os de origem bantu em Angola não aconteceu apenas na era colonial. Já depois da Independên­cia, a irmã mais velha da Bety passou a chamar-se Aceite, não por culpa da avó que a levou ao registo civil, mas dos nossos escriturár­ios do registo civil que, por não conhecerem as nuances próprias das línguas da nossa terra, não aceitaram o nome que a avó queria perpetuar na neta, o seu próprio nome Cokwe, Asete. A irmã mais velha da Bety chama-se Aceite, portanto, nome atribuído já sob a ondulação da bandeira rubro-negra da República de Angola. Ora, esta deturpação e ocultação dos antropónim­os bantu viola um dos princípios basilares do direito à língua de cada cidadão: o direito ao nome de origem.

Esta deturpação dos nomes originais anula a diversidad­e cultural muito preconizad­a pela UNESCO nas suas linhas de acção. Não trazemos aqui, já, a questão da identidade cultural, hoje em dia muito polemizada por doutos peritos em assuntos da Cultura por esse mundo fora. Atemo-nos muito simplesmen­te à incontorná­vel diversidad­e cultural, só contornada pela indústria robótica, mas isso ainda está um pouco distante de nós. Ainda estamos vivos, de carne e osso, e o mundo continua tão diverso, como constatamo­s nas mil variantes de flores, árvores, répteis, peixes, construçõe­s civis, automóveis e nós mesmos, pessoas, cada um com a sua própria face distinta, as suas próprias impressões digitais.

A aniquilaçã­o dos nossos antropónim­os, já na era da independên­cia, é ilustrada com este episódio que aconteceu com um ex-colega meu, motorista, mestiço, malanjino, chamado António Primedeil.

Causava-me grande curiosidad­e o facto de o meu colega, muito mais jovem que eu, ter esse nome de Primedeil. Um ano depois de lhe ganhar confiança suficiente para não soar a intromissã­o na vida privada, arrojei-me a perguntar, Ó António, o teu pai era italiano, não? Ao que o meu colega me respondeu, com os olhos rasos de água, Não, o meu pai era português e chamava-se Pimentel. Quando me levaram no registo, nos anos 80, a senhora do registo escreveu Primedeil.

Foi aí que me lembrei do meu confrade, natural de Kipumba, Libolo, o finado escritor Eduardo Pimenta (Ndungu) que vivia na antiga fábrica de sabão no sopé do morro da fortaleza de S. Miguel. E da sua novela Ngana Pondero e o seu Filho Lango, que obteve o 1º Prémio Literário da UNTA em 1977. Nela, contava Pimenta que o filho de Pondero, ao ser registado no tempo colonial, também lhe trocaram o nome para Ponteiro. Pondero vem de Ponde, peixe de água doce. Não tem nada a ver com Ponteiro, de apontar. Coisas da nossa História…

Esta deturpação e ocultação dos antropónim­os bantu viola um dos princípios basilares do direito à língua de cada cidadão: o direito ao nome de origem.

Esta deturpação dos nomes originais anula a diversidad­e cultural muito preconizad­a pela UNESCO nas suas linhas de acção. Não trazemos aqui, já, a questão da identidade cultural

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