Curiosidades da antroponímia angolana
A pequena Bety sempre ouvia a tia chamar o pai dela de Héka, assim, com o acento na primeira sílaba, de modos que esta primeira sílaba na língua de tonalidades Ngoya soava como cavalo mecânico ao qual se atrelava o resto do nome.
Bety só tinha sete anos. Não entendia como é que o nome do pai, que no bilhete de identidade estava escrito Egas, passava misteriosamente para Héka (ou melhor, Héééka!, com uma sonoridade que a língua portuguesa é incapaz de reproduzir).
Só aos 16 anos é que a Bety compreendeu o mistério da polifonia do nome do seu progenitor. Foi a avó, de 70 anos, que lhe deu sucinta e esclarecedora explicação. O nome do pai era o nome bantu da família, Héka. Que significa “Não Sei se Viverá”. O termo bantu é oriundo da língua Ngoya, do Cuanza-sul.
O pai da Bety nasceu no início dos anos 70, e foi registado na era colonial e o colono adaptou Héka ao antropónimo luso Egas. De modos que, ela e todos os seus irmãos levam o sobrenome de Egas. Héka ficou irremediavelmente perdido no coração do avô da Bety, neste momento a remoer-se no subsolo do Cuanza-sul.a mutilação dos antropónimos de origem bantu em Angola não aconteceu apenas na era colonial. Já depois da Independência, a irmã mais velha da Bety passou a chamar-se Aceite, não por culpa da avó que a levou ao registo civil, mas dos nossos escriturários do registo civil que, por não conhecerem as nuances próprias das línguas da nossa terra, não aceitaram o nome que a avó queria perpetuar na neta, o seu próprio nome Cokwe, Asete. A irmã mais velha da Bety chama-se Aceite, portanto, nome atribuído já sob a ondulação da bandeira rubro-negra da República de Angola. Ora, esta deturpação e ocultação dos antropónimos bantu viola um dos princípios basilares do direito à língua de cada cidadão: o direito ao nome de origem.
Esta deturpação dos nomes originais anula a diversidade cultural muito preconizada pela UNESCO nas suas linhas de acção. Não trazemos aqui, já, a questão da identidade cultural, hoje em dia muito polemizada por doutos peritos em assuntos da Cultura por esse mundo fora. Atemo-nos muito simplesmente à incontornável diversidade cultural, só contornada pela indústria robótica, mas isso ainda está um pouco distante de nós. Ainda estamos vivos, de carne e osso, e o mundo continua tão diverso, como constatamos nas mil variantes de flores, árvores, répteis, peixes, construções civis, automóveis e nós mesmos, pessoas, cada um com a sua própria face distinta, as suas próprias impressões digitais.
A aniquilação dos nossos antropónimos, já na era da independência, é ilustrada com este episódio que aconteceu com um ex-colega meu, motorista, mestiço, malanjino, chamado António Primedeil.
Causava-me grande curiosidade o facto de o meu colega, muito mais jovem que eu, ter esse nome de Primedeil. Um ano depois de lhe ganhar confiança suficiente para não soar a intromissão na vida privada, arrojei-me a perguntar, Ó António, o teu pai era italiano, não? Ao que o meu colega me respondeu, com os olhos rasos de água, Não, o meu pai era português e chamava-se Pimentel. Quando me levaram no registo, nos anos 80, a senhora do registo escreveu Primedeil.
Foi aí que me lembrei do meu confrade, natural de Kipumba, Libolo, o finado escritor Eduardo Pimenta (Ndungu) que vivia na antiga fábrica de sabão no sopé do morro da fortaleza de S. Miguel. E da sua novela Ngana Pondero e o seu Filho Lango, que obteve o 1º Prémio Literário da UNTA em 1977. Nela, contava Pimenta que o filho de Pondero, ao ser registado no tempo colonial, também lhe trocaram o nome para Ponteiro. Pondero vem de Ponde, peixe de água doce. Não tem nada a ver com Ponteiro, de apontar. Coisas da nossa História…
Esta deturpação e ocultação dos antropónimos bantu viola um dos princípios basilares do direito à língua de cada cidadão: o direito ao nome de origem.
Esta deturpação dos nomes originais anula a diversidade cultural muito preconizada pela UNESCO nas suas linhas de acção. Não trazemos aqui, já, a questão da identidade cultural