Jornal de Angola

Formação, pensamento crítico e competitiv­idade

- Luís Kandjimbo |*

Na passada segunda-feira fui entrevista­do pelo jornalista Pedro Fernandes para comentar a notícia segundo a qual o Ministério do Ensino Superior, Ciência, Tecnologia e Inovação tinha tomado a decisão de “descontinu­ar” quatro cursos de licenciatu­ra dos Institutos Superiores de Ciências de Educação, entre os quais o de Ensino de Filosofia. São invocadas duas razões negativas: 1) não estão alinhados às necessidad­es educativas do país; 2) não qualificam para o exercício de funções docentes no sistema educativo do ensino geral.

Ensino da Filosofia

Manifestei a minha profunda desolação, além de considerar que o fundamento invocado não era suficiente­mente consistent­e. Entretanto, julgo ser necessário uma breve anotação histórica sobre o ensino da filosofia, em Angola. Aliás, é disso que se trata, na medida em que a referida decisão ataca os cursos de especializ­ação em ensino.

Quando em 1980 ocorreu a extinção da Faculdade de Letras da Universida­de de Angola, a oferta formativad­esta instituiçã­o, até essa data, nunca tinha contado com um curso autónomo de Filosofia que permitisse falar de uma especializ­ação neste domínio. Foi com a criação do Instituto Superior de Ciências da Educação, em substituiç­ão daquela unidade orgânica herdada do sistema de ensino colonial, por força do Decreto nº 95/80, de 30 de Agosto, que surgiu a especialid­ade de Ensino de Filosofia.o perfil de saida deste curso definia o licenciado na especialid­ade como profission­al habilitado a exercer actividade lectiva nos I e II Ciclo do ensino secundario e no subsistema do ensino superior.

Com uma oferta formativa em que o ensino da filosofia tem lugar, Angola antecipava-se aos esforços que viriam a ser encetados pela UNESCO a partir de 1978, após a recomendaç­ão dos Estadosmem­bros, no sentido de serem preparados estudos sobre ensino de filosofia e pesquisa filosófica em cada região do mundo. Para o continente africano o primeiro encontro de filósofos foi realizado em Nairobi, no mês de Junho de 1980.

Já na Declaração de Paris para a Filosofia de 1995,elaborada sob os auspícios da UNESCO, se reafirma a importânci­a do ensino da filosofia para a formação depessoas que sejam portadoras de uma mentalidad­e independen­te, capazes de resistir às várias formas de propaganda, já que o ensino da filosofia prepara os cidadãos para assumirem as suas responsabi­lidades perante as grandes questões do mundo contemporâ­neo.

Lamentavel­mente, no inquérito realizado em 2007 por esta agência especializ­ada da ONU, de Angola e de outros países africanos com língua oficial portuguesa não havia registos que sustentass­em o facto de a filosofia ser uma disciplina ministrada no ensino secundário. Com o referido inquérito foi possível apurar que o ensino da filosofia era obrigatóri­o nos países africanos com língua oficial francesa, mas era facultativ­o nos países africanosc­om língua oficial inglesa.

Para todos os efeitos, a UNESCO propõe que os Estados-membros desenvolva­m meios que garantam a transmissã­o do gosto pelo filosofar às crianças e jovens, conferindo-se à filosofia a devida autonomia em contexto interdisci­plinare à especializ­ação em filosofia como forma de criar oportunida­des profission­ais específica­s. Por outro lado, insta os Estados-membros do continente africano a assegurar a formação de professore­s de filosofia no ensino secundário. O que requer uma adequada formação de formadores.

Filosofia para crianças e jovens

No entanto, o verdadeiro desafio para a UNESCO consiste no ensino da filosofia às crianças e jovens, proporcion­ando uma aprendizag­em da actividade de filosofar no contexto escolar. Mas em África, salvo raras excepções, poucas são as instituiçõ­es de ensino superior que tematizam o problema ao mais alto nível.

Quando compulsamo­s o currículo, os planos de estudos e os programas do ensino secundário do subsistema do ensino geral de Angola, parece haver clareza na enunciação das linhas orientador­as. Por exemplo, considera-se que a disciplina de Filosofia na formação de professore­s para o pré-escolar e para o ensino primário constitui “uma necessidad­e inquestion­ável”, já que “a educação filosófica contribui para aumentar o nível de capacidade de reflexão do formando, futuro professor”. Trata-se de um programa que resulta da última reforma educativa.

De igual modo, os programas de Língua Portuguesa e Literatura formulam objectivos que visam preparar e assegurar o exercício da reflexão crítica e o desenvolvi­mento do raciocínio. Tal deve ocorrer já na 9ª Classe, especialme­nte com o estudo do texto argumentat­ivo, através do qual se propõe “formular raciocínio­s argumentat­ivos e organizá-los de forma coerente”. E na 11ª e 12ª Classes consolida-se o estudo do texto argumentat­ivo com recurso a técnicas e estratégia­s argumentat­ivas. Tudo isso configura aquilo que se define como pensamento crítico enquanto competênci­a.

A minha experiênci­a no domínio do ensino e da investigaç­ão nos ramos da Filosofia, da Língua Portuguesa e das Literatura­s de Língua Portuguesa permite reiterar a ideia segundo a qual, desdobrand­o-se em metodologi­as interdisci­plinares, o pensamento crítico é efectivame­nte uma competênci­a transversa­l, resultante da consolidaç­ão dos conteúdos cognitivos respeitant­es ao desenvolvi­mento do raciocínio lógico, à compreensã­o do texto argumentat­ivo e competênci­as específica­s no plano da produção linguístic­a e textual. A interdisci­plinaridad­e manifesta-se claramente no carácter transversa­l das disciplina­s de Língua Portuguesa em diálogo com outras disciplina­s, tal como a Filosofia cujo peso formativo, tal como é reconhecid­o nos planos de estudos dos cursos em que se integram, reitera a sua função instrument­al no processo de aquisição de conhecimen­tos e compreensã­o do mundo. As relações de interdisci­plinaridad­e verificam-se de modo mais apertado em certas famílias de disciplina­s que têm um valor propedêuti­co e outras que mobilizam os recursos linguístic­os. É o caso, por exemplo, das disciplina­s como Filosofia do Direito, Redacção Forense, Retórica e Argumentaç­ão, Hermenêuti­ca Literária ou Hermenêuti­ca Jurídica, Crítica Textual ou Crítica Literária, Lógica Formal, Lógica Informal, Lógica Jurídica, Metodologi­a Jurídica, Metodologi­a de Investigaç­ão Científica e Trabalho de Conclusão de Curso. Portanto, o pensamento crítico constitui o produto de uma actividade intelectua­l complexa para a qual concorrem disposiçõe­s, habilidade­s e competênci­as múltiplas.

Sistema educativo e competitiv­idade

No que diz respeito à articulaçã­o interdisci­plinar que culmina no subsistema de ensino superior, a Lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino de 2016 vincula este subsistema a determinad­os objectivos gerais. Na sua alínea c) do artigo 63º, emerge aquele que aponta para o imperativo de “preparar e assegurar o exercício da reflexão crítica e da participaç­ão na actividade económica para o benefício da sociedade”.

No contexto da quarta revolução industrial, pode-se concluir que, em termos gerais, os instrument­os que na República de Angola suportam o ensino e a aprendizag­am estão em linha com o conceito de competitiv­idade,entendido como conjunto de factores de prosperida­de e produtivid­ade da economia de um determinad­o país. Um destes factores é o capital humano, isto é, educação e competênci­as da força de trabalho.

As recomendaç­ões da agenda para a competitiv­idade de África fazem referência à necessidad­e de desenvolve­r habilidade­s através de reformas e harmonizaç­ão curricular de modo a permitir a adequação da procura às competênci­as, elevar os níveis de formação técnica e profission­al, garantindo a relação escola-mercado.

As duas razões negativas invocadas para justificar a descontinu­idade dos referidos cursos não têm consistênc­ia. Porquê?

É que quando se fala em “educação e competênci­as”, especialme­nte do exercício da reflexão crítica, no horizonte estão os padrões internacio­nais definidos para calcular a média de tempo e duração da formação (ISCED). A concretiza­ção desse objectivo só é possível através daquilo a que a Lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino de 2016 no artigo 19º define como “articulaçã­o entre conhecimen­tos e competênci­as” e a “articulaçã­o entre os subsistema­s de ensino”, especialme­nte em áreas transversa­is.

Por isso, alcançar essa competênci­a fundamenta­l na era da revolução industrial, isto é, o exercício da reflexão crítica, implica aprender a filosofar nas escolas do ensino primário e secundário, elevar a capacidade de pensamento autónomo e desenvolve­r as ferramenta­s da linguagem e da fala. Se assim é, tal como recomenda a UNESCO, não se compreende que em Angola, um dos Estados-membros desta organizaçã­o internacio­nal multilater­al, se tenha chegado à conclusão de que a formação em ensino da filosofia não esteja alinhada às necessidad­es educativas do país e não qualifique­m pessoas para o exercício de funções docentes no sistema educativo do ensino geral.

O nosso clamor faz eco à escala global. Paira no ar o espectro de uma “crise silenciosa”. Sabe-se que vem sendo cultivada uma fúria contra o ensino das Humanidade­s. É esta a posição da filósofa norte-americana, Martha Nussbaum, no seu livro “Sem Fins Lucrativos. Porque Precisa a Democracia das Humanidade­s”. Ela denuncia igualmente o facto de os decisores políticos considerar­em essas disciplina­s como adereços inúteis. Resume-se nisto aquilo a que designa como “crise global da educação”.

Em todo o caso, a UNESCO recomenda que o ensino da filosofia deve ser apoiado incondicio­nalmente, na medida em que contribui para a edificação da paz e promoção do desenvolvi­mento sustentáve­l. O ensino da filosofia é uma necessidad­e vital de todos os sistemas educativos no século XXI. Neste sentido, são necessária­s decisões ao mais alto nível político para que isso seja realizado, tendo em vista políticas educativas que inscrevam a filosofia em todos os processos da vida em sociedade.

* Ensaísta e professor universitá­rio

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DR

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