Jornal de Angola

Em defesa dos jogos endógenos

- João Fernando André*

É comum recorrermo­s aos jogos ocidentais para nos deleitarmo­s e relaxarmos ou espevitarm­os a mente.

Dos jogos ocidentais, o xadrez é o mais apreciado pelos intelectua­is. Pelo xadrez, os jogadores conseguem travar uma batalha onde leva a melhor quem for mais atento.

Há um conjunto de jogos ocidentais que não têm piada nenhuma. Jogos como o golfe, o futebol americano e o boxe são, na nossa opinião, provas da banalidade. No golfe, jogadores impulsiona­m uma bola com um taco para o interior de vários buracos que se encontram num campo extenso; no futebol americano, usa-se muita agressivid­ade, ataques e defesas com o corpo (touchdown) entre os jogadores de duas equipas e no boxe, um dos piores desportos do mundo para nós, atletas enfrentams­e com os punhos, trocam socos violentame­nte.

Tendo em conta o rumo da colonizaçã­o cognitiva que a maior parte dos africanos vai sofrendo ao longo dos séculos, em muitos países há a prática desses desportos ocidentais. Existem até federações.

Tomemos como exemplo “o membro da África global”, Mike Tyson que, em Las Vegas, pela prática do boxe, acabou por “comer” um pedaço da orelha do outro, Holyfield, no ringue, demonstran­dodesrespe­itoaooutro enquanto indivíduo.

Em África, a pessoa é valorizada enquanto elemento do cosmo. Muntu (a pessoa) deve cultivar a metafísica. Tanto é assim que as histórias contadas à volta da fogueira, na África profunda, servem muito mais para (in)formar as crianças e os jovens do que para se lhes pôr a dar risadas. O acampament­o dos rapazes circuncida­dos (mukanda para o tucokwe) é uma escola endógena de aprendizag­em do essencial para viver, os jisabhu, mi-imbu e jinongonon­go (máximas, provérbios, poesia, canções e adivinhas em kimbundu) são elementos metafísico­s e metonímico­s.

O mesmo acontece com os jogos africanos. Ao contrário de muitos jogos ocidentais, os jogos africanos mais importante­s nas comunidade­s são meios de demonstraç­ão de inteligênc­ia e prática da filosofia. Vejamos o caso dos jogos lwela (wela), npanza, ndele, sweka solola, mansasa mena e nkinka.

As práticas desportiva­s citadas no parágrafo anterior estão longe da brutalidad­e e banalidade do boxe, são jogos endógenos que ensinam o autocontro­lo e a defesa das comunidade­s contra ataques estrangeir­os, práticas desportiva­s de inteligênc­ia e de contrainte­ligência.

Ngonga Afonso, responsáve­l pela promoção e valorizaçã­o do Centro Histórico de Mbanza Kongo, capital do antigo Reino do Kongo, explana que, com a prática da lwela, era possível traçar uma estratégia ou ofensiva militar para a defesa do reino contra ataques inimigos, pois que este jogo servia de cartografi­a no campo de batalha.

Ngonga diz ainda que o jogo npanza era usado como um detector de mentiras em julgamento­s [do direito consuetudi­nário].

O mesmo ukulu wendamba (mais-velho ajuizado) Ngonga encerra a sua comunicaçã­o esclarecen­do que a prática desportiva da sweka solola funcionava como um estudo psicológic­o para desvendar alguns segredos ou descobrir o paradeiro de alguém.

Assim, notamos que os jogos endógenos são uma herança que devíamos aproveitar e modernizar para que os africanos pudessem espevitar a mente e evitar a prática de desportos ociosos e incitadore­s de violência, como é o caso do golfe, do boxe e de um conjunto de jogos electrónic­os de guerra inventados e promovidos pelo Ocidente.

*Professor e ensaísta

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