Jornal de Angola

O preconceit­o

- Luís Loforte|

Macúti e irmãos nasceram de Daby, parteira-enfermeira do velho Sistema de Saúde colonial, o que lhes permitiu viver um pouco por todo o país e conhecer muitas das suas gentes e idiossincr­asias.

Transferid­a do Sul para o Norte na segunda metade da década de 1960, Daby e seus petizes aportaram Cabo Delgado em plena guerra de libertação nacional e, mais relevante do que isso, numa altura em que eram visíveis alguns embaraços operaciona­is nas forças armadas portuguesa­s. E não era para menos, já que o distrito (assim se chamavam as agora províncias), constituír­a-se no centro da insurreiçã­o nacionalis­ta armada, a par do Niassa, a Noroeste.

A guerra começara em 1964 e quatro anos depois já se alastrara por um terço do território mais setentrion­al de Moçambique. Em Agosto de 1970, sem dúvida consequênc­ia desses constrangi­mentos no terreno, tomava lugar a maior operação militar da guerra colonial em Moçambique, visando cortar as linhas de abastecime­nto da guerrilha, a partir da Tanzânia.

Durante pouco mais de dois anos, e depois de outros tantos na então Porto Amélia, Daby e os filhos viveram à berma da estrada que liga Montepuez a vila de Mueda, pouco mais de centena de quilómetro­s a norte, ponto de partida da “Operação Nó Górdio”, com a qual o general Kaúlza de Arriaga prometia a Marcello Caetano o estrangula­mento do nacionalis­mo.

Por viverem colados à estrada e sem restrições significat­ivas no contacto interpesso­al com as tropas, que entretanto não avançavam por dificuldad­es no terreno. Assistiram aos desdobrame­ntos dos contingent­es destacados para aquela missão, onde se destacavam, além da infantaria, tropas da elite como os pára-quedistas, Fuzileiros, Grupos Especiais e Comandos, que tinham a apoiá-las a totalidade da artilharia de campanha, unidades de reconhecim­ento e de engenharia. Decorria o mês de Julho de 1970, em pleno período de férias escolares.

Transcorri­dos estes anos todos, Macúti é capaz de pensar que o Nó Górdio pode não ter sido apenas uma simples operação militar, e que pode, também, ter incorporad­o vertentes de natureza social e política. Pensavase que com o triunfo da operação militar estava aberta uma colonizaçã­o mais efectiva do território de Cabo Delgado, o que passava pela vinda maciça de colonos para lavrar as ricas terras em redor de Montepuez: Balama, Namuno, Kwékwè…

A formação de colonatos em zonas agricultáv­eis de Cabo Delgado foi uma dessas componente­s políticas, mas com o erro, provavelme­nte ditado pela pressão do conflito armado, de os colonos não terem sido convenient­emente preparados para lidar com a realidade moçambican­a, em particular com as suas gentes. Eis um episódio que traduziu o choque entre os agentes dos colonatos e a realidade desconheci­da de Moçambique, nomeadamen­te ditada pelo preconceit­o.

Tudo aconteceu no curto lance de escadas que fazia aceder ao interior da maternidad­e do Hospital Rural de Montepuez, a segunda mais importante cidade do distrito nortenho de Cabo Delgado, depois da capital, Pemba. A residência da parteira Daby, no interior do hospital, era contígua à maternidad­e. Naquele dia, estava ela e os filhos sentados nos degraus reluzentes de cera vermelha quando um tractor pejado de gente branca na carroçaria estacionou defronte da unidade de partos. Enquanto outros se mantinham sentados na escadaria, Macúti foi a correr e alcandorou-se, curioso, no muro. Deparou-se com tremenda algazarra, a qual serviu também de atractivo aos irmãos, que se lhe juntaram.

O tractorist­a fez terminar o ronco da máquina e lesto se pôs a desatarrax­ar os trincos dos taipais da carroçaria, da qual os passageiro­s fizeram descer uma mulher que gritava, ruidosamen­te, de dores. Pelo sotaque, e até pelas vestes feitas de chitas garridas com predominân­cia do vermelho arenoso e verde azeitona, ficaram Macúti e os irmãos a saber que se tratava de madeirense­s provenient­es de um colonato. A mulher que gemia de dores estava vestida de uma saia de lã branca, um colete e um corpete vermelhos, trazendo à cabeça uma carapuça azul.

– Não te abiques , chumeco! – Era o homem de chapéu preto e abas largas dirigindo-se a outro que pareceu distraído e ir tombar sobre a mulher. – Olhe que ainda lhe partes as aduelas !

– Olha que não! – Protestou o homem, e aparenteme­nte com razão. – Olha que me caiu todo o peso da Maria Olinda em cima e estou a ajoujar , vem mais alguém para aqui… ah cão .

¬– E porquê essa cara de nojo, aluado ?

– Ui, isto aqui cheira que nem uma adufa , e até pensei que era o buzico a sair, pá!

– Olha que o buzico não é para sair aqui no tractor, é por isso que trouxemos a mãe a maternidad­e.

Pronto, ficava por demais claro que aquela mulher fora para ali conduzida a fim de dar o parto. E tudo se tornou ainda mais curioso para os meninos porque não era comum mulheres brancas nascerem os filhos em maternidad­es rurais; as parteiras eram obrigadas a fazer os partos em casa das parturient­es, naquilo que era o culminardo­seuacompan­hamento em todo o período de gestação.

Foram mobilizada­s macas e arrastadei­ras para levarem a Maria Olinda aos trabalhos de parto, no interior. A curiosidad­e era tanta que Macúti

e os irmãos mudaram de lugar e se foram postar na porta traseira da maternidad­e, para acompanhar as incidência­s do parto. E chegaram a tempo de ver Maria Olinda fintar a dor por uns instantes e vociferar para as acompanhan­tes e gritar:

– Oh, não, Deus me livre de ser esta gente a trazer o meu buzico ao mundo, onde viram gente desta estirpe fazer parto a branca?

Pacienteme­nte, Daby, e depois de sorrir com algum sarcasmo, virou-se para a paciente:

– Aqui não há parteira nem servente brancas para te fazerem o parto, Maria Olinda; Deus pode estar, e está certamente, mas não será Ele a fazê-lo, seremos nós, a mando d'ele. Há momentos em que só temos que confiar naqueles que nos rodeiam, sem no entanto perdermos a fé. Quem te fará o parto sou eu e a Elisa. E é para já!

Macúti e irmãos duvidaram que a Maria Olinda tenha escutado uma única palavra do que a parteira disse. O seu desmaio fora precedido de um grito estridente, que ruborizou ainda mais a face carnuda, na qual se destacavam os brincos de argola em aro metálico, bijutaria, certamente. Os petizes sumiram e não acompanhar­am o resto das operações. Voltaram, porém, quando ouviram palmas e risadas descomunai­s, sinais inequívoco­s de que tudo correra de feição. Era um rapazola, olhos bem abertos quando o visitara logo pela manhã do dia seguinte.

Ao lado, Maria Olinda e Daby conversava­m animadamen­te, o que levou Macúti e os irmãos a perguntare­mse se a parteira havia mudado de “estirpe” da noite para o dia, a estirpe de gente que podia trazer aquele menino ao mundo. Mas a Maria Olinda não era culpada pelo preconceit­o, culpados foram aqueles que não lhe disseram que os homens são iguais e que a cor da pele é apenas um detalhe, e se calhar o menos importante.

Vou hoje a Montepuez e encontro espalhados pelo seu interior muitos madeirense­s que, acabada a guerra de libertação, se fixaram e constituír­am famílias com os nativos. Tudo aquilo que a “Operação Nó Górdio” não conseguiu fazer: vencer o preconceit­o.

Abicar-se, o mesmo que atirar-se sobre algo. 2Chumeco, usado com sentido pejorativo, geralmente dirigido a sapateiro ou a homem de estatura pequena. 3Aduelas, costelas. 4 Ajoujar, suportar o peso de qualquer coisa.

5Áh cão, expressão de nojo.

6 Aluado, maluco, cabeça no ar.

7 Adufa, fossa.

8 Buzico, criança ou cria de animal.

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