Jornal de Angola

Morre o homem fica a fama

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Interrompo a série “Coisas da Vida em Angola” à qual caberia hoje o número quatro na epígrafe, por assumida responsabi­lidade, por formação cívica, por pura honestidad­e intelectua­l, e ainda por imperativo da minha consciênci­a. Retomá-la-ei na próxima semana se, entretanto, não se intrometer o imprevisív­el ou o anormal no seu caminho. Interrompo a temática da série de crónicas que vinha escrevendo sobre a nossa vida, por virtude da morte do general (não do coronel) Otelo Saraiva de Carvalho, um homem nascido em terra africana e a quem nós, africanos e portuguese­s que vivemos dominados pela ditadura fascista de Salazar e Caetano, ficamos a dever a liberdade e a conquista da dignidade. “A quem devemos a liberdade e a igualdade”, idêntico no pensamento, disse o artista Herman José, referindo-se à morte do incontestá­vel estratega do 25 de Abril, essa data memorável que infelizmen­te já foi esquecida por muitos (chegam à vil pretensão de a querem apagar) e é totalmente desconheci­da por muita da miudagem de hoje.

“Fascinante, polémico, truculento, generoso, cavalheiro, inesquecív­el”,herman não poupou elogios ao herói.“por causa da sua tremenda coragem” disse dele outra personalid­ade, nos inúmeros depoimento­s divulgados na comunicaçã­o social.

Aquela coragem que falta a tantos de nós, acrescento por meu lado, para além de vincar o facto de o ter visto sempre como um homem fascinante, de estilo cinematogr­áfico, tal como as estrelas dos filmes de Hollywood que enchiam o nosso imaginário, naquele tempo em que vivíamos, todos nós, um magnífico sonho, e aplaudíamo­s o herói que na tela acabava com a raça dos bandidos.

A caracterís­tica rebelde de Otelo Saraiva de Carvalho estava bem vincada nos seus gestos e nas suas palavras, perfeitame­nte definidas no discurso do antigo presidente português, o general Ramalho Eanes. “Otelo tem direito a lugar de proeminênc­ia na História” e para o caracteriz­ar melhor disse que era “um homem bom, generoso, mas pouco prudente”. Ramalho Eanes, ainda sobre a principal figura da Revolução dos Cravos, afirmou ser seu particular amigo.

Mas todos os homens fortes, inclusive aqueles que sabem bem de que lado vem a chuva, nem sempre são prudentes, nem sempre conseguem abandonar o barco antes que a tempestade chegue e assim sendo, não sabem retirar espaço à intriga, sujeitando-se a que na hora que deveria ser glorificad­o, surjam lamentos como este doloroso grito,“morreu o homem que mandou matar o meu pai”, desabafo do filho de uma das vítimas das FP-25 ou Forças Populares 25 de Abril, organizaçã­o armada a que Otelo supostamen­te esteve ligado, responsáve­l por várias mortes. Condenado em 1986 a 15 anos de prisão por associação terrorista, foi mais tarde amnistiado. Ramalho Eanes foi sua testemunha abonatória.

“Nunca mandei matar ninguém, tenho horror a qualquer assassínio”, disse Otelo ao filho em hora difícil.

O julgamento das FP-25 terminou em 2001 no Tribunal da Boa Hora em Lisboa, e Otelo Saraiva de Carvalho foi absolvido pelo colectivo de juízes. A justiça dos homens difere da dos tribunais, quase sempre complicada. Foi alvo de injustiça ou, pelo menos, não se fez justiça no seu caso específico. E é verdade que os heróis no mundo andam escondidos atrás da cortina da moral e da ética das sociedades. O culto dessas personagen­s que fazem as leis, sempre consistiu em condenar precisamen­te aqueles que são contra fazer mal, contra a ideia de matar. Já era assim no tempo de José Joaquim da Silva Xavier, o célebre Tiradentes, um mártir da independên­cia do Brasil, idealista de uma revolução libertador­a, esquarteja­do e crucificad­o pela justiça. Passados mais de cem anos,foi considerad­o herói nacional e a sua efígie cunhada em moeda.

Ao tomar conhecimen­to da morte de Otelo Saraiva de Carvalho e após ter assistido a impression­ante homenagem que lhe foi feita pelo povo português durante o seu funeral, clamando pelo luto que lhe negaram os políticos, entre os muitos comentário­s que se fizeram acerca dela, fiz para mim mesmo,convicta, firme e determinad­a, a seguinte afirmação: Morreu o homem mas ficou a sua fama. E em vez de chorar vi-me a cantar baixinho, não um fado triste do Marceneiro, nem o mbirimbiri

de mestre Liceu e do Ngola Ritmos, mas músicas dolentes do imortal sambista brasileiro Ataulfo Alves. Uma espécie de poutpourri, um conjunto heterogéne­o de canções que falavam ao coração, Já caí, levantei, conheci a descida, aprendi bem depressa, me tornei professor nessa jornada, transforme­i a minha vida no meu alto astral, falsos amigos, falsos amores, depois de tudo acabado dei a volta por cima. Levantei o tom e fui levado ao grande êxito de Ataulfo,

“Na cadência do samba”, que enfatiza literalmen­te o refrão, O meu nome não se vai jogar na lama/diz o dito popular/ morre o homem, fica a fama.

Foi assim com Otelo. Apesar da figura controvers­a que foi, a sua fama será eterna. E é com muita mágoa, curiosamen­te com um triste samba-canção a soar nos ouvidos que hoje me despeço dos meus amigos e leitores. Até domingo à hora do matabicho, como tem sido hábito.

Lisboa, 31 de Julho de 2021

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