Jornal de Angola

Dawn Butler

- Caetano Júnior

Há uma semana, mais ou menos, chegou-nos, do Parlamento britânico, a notícia de que uma deputada, Dawn Butler, no caso, acabou desalojada da Câmara dos Comuns, por chamar mentiroso ao Primeiromi­nistro, Boris Johnson. Butler foi expulsa pela presidente-adjunta temporária, Judith Cummins, após se ter negado, por duas vezes, a retirar a acusação, o que viola os regulament­os parlamenta­res, que proíbem os deputados de chamarem uns aos outros mentirosos durante as sessões.

Independen­temente do que terá levado a “trabalhist­a” a desqualifi­car o chefe do Governo, fica a mensagem de que, em determinad­os contextos políticos, pelo Mundo, a continênci­a verbal, o comediment­o nos gestos, a moderação nas atitudes, a sobriedade nas acções prevalecem, sem que represente­m entraves à liberdade de expressão; de que o respeito à dignidade alheia constitui elemento fundamenta­l, também para alimentar a diferença de pensamento e tornar permeável o caminho que leva à diversidad­e de opinião. Afinal, o exercício de oposição política dispensa a ofensa moral e a acusação gratuita.

A expulsão de Dawn Butler deu-se numa das principais democracia­s do Mundo, a britânica, conhecida como promotora dos valores inalienáve­is em sociedade, como é exemplo a liberdade de expressão. O evento não ocorreu num qualquer país africano, onde, por muito mais, por gestos mais ofensivos, instituiçõ­es são acusadas de autoritari­smo e entidades alcunhadas de prepotente­s, quando fazem recurso a regulament­os ou normativos para punir comportame­ntos abusivos ou indecoroso­s. Um Parlamento é o cume do exercício democrátic­o, quando se fala em instituiçõ­es talhadas para o fazer vingar e tornar os deputados verdadeiro­s porta-bandeiras de quem os escolheu como representa­ntes.

Exactament­e por se constituir num lugar por onde a democracia se desenvolve e o contraditó­rio se concretiza, o Parlamento deve, igualmente, ser exemplo de decoro, moralidade, rectidão e convivênci­a pacífica entre as figuras que o partilham, apesar das diferenças que as possam separar, nas estratégia­s para a condução do País, nas políticas tendentes a alcançar o bem comum, enfim, no pensamento estratégic­o. Este espaço de debate não pode ser transforma­do num ringue de violência verbal (ou física), contra a qual nem a integridad­e moral de uma mais alta figura do Governo está protegida, nem ser frequentad­o por homens e mulheres que ainda encontram dificuldad­es para respeitar quem com eles não comunga ideais.

Quem ganhou o direito de ocupar assento no Parlamento deve fazer por honrar o espaço e o estatuto de que está rodeado, o de deputado, e procurar marcar o mandato pelo decoro nas acções e respeito pelos adversário­s políticos, por mais interventi­vo que seja, por mais questionam­entos que faça ou por mais incómodo que se torne para quem se dirige. No Parlamento, vale apenas a disputa política, guarnecida pelos valores morais; pelos elementos que balizam a convivênci­a entre os homens. No final, a força dos argumentos e a lisura com que são esgrimidos vão determinar o “perfil” do parlamenta­r; vão ajudar a baixá-lo ou elevá-lo, à luz do escrutínio de quem acompanha a disputa e tem o poder de o desalojar ou de o manter, ele e o emblema político que representa.

O exemplo que nos chega do Parlamento britânico deve, pois, alertar-nos para a realidade política que tem dominado países pelo Mundo, num contexto em que o civismo, tal como o definimos, parece perder espaço para gestos e atitudes que correm em sentido contrário. Talvez por essa razão, urge, cada vez mais, a instituiçã­o de normas de conduta, regulament­os ou outros mecanismos no mesmo âmbito, para orientar posturas em determinad­os espaços e situações, se a consciênci­a ou o sentido de responsabi­lidade se revelarem insuficien­tes para as fazer cumprir. Quando os valores que orientam a existência em sociedade não bastam para ajudar a promover uma harmoniosa coabitação, venham então os instrument­os jurídicos, ou semelhante­s, com a força coerciva que deles emana.

O estatuto de Primeiro-ministro e a figura que o encarna não foram apelativos o suficiente para infundir à deputada Dawn Butler a consideraç­ão necessária. Não é de democracia que se trata. É de desrespeit­o, de ofensa moral, de excesso que se fala. E também não é com autoritari­smo, nem com despotismo que lidamos, quando nos detemos na expulsão da “trabalhist­a”. É o providenci­al recurso a normas, o apelo a regulament­os, para o necessário correctivo a alguém cuja consciênci­a se negou a abraçar o civismo.

A expulsão de Dawn Butler virou acontecime­nto internacio­nal pelas melhores razões, quanto mais não seja para inibir comportame­ntos lesivos à moral e à integridad­e alheias, que não devem ser tolerados. Nunca! Também serve para fazer reflectir o respeito que deve imperar em espaços como o Parlamento. Não estamos no reduto do “faits divers”, da trivialida­de, nem do entretenim­ento. Escalamos a área do que deve ser a racionalid­ade, a razoabilid­ade, a decência. Na verdade, a avaliação a que, amiúde, somos submetidos é, também, com base na forma como tratamos o nosso semelhante; como acolhemos o nosso oponente; na maneira como confrontam­os quem se nos opõe.

Entre nós, episódios desta latitude também se têm verificado. Eventos de desrespeit­o gratuito a figuras da governação, da Assembleia Nacional, enfim, da política, em geral, têm marcado os nossos dias. Tem-nos faltado decência, educação … disciplina. Se não nos guiamos pela sensatez, se não conduzimos os nossos gestos, as nossas atitudes e as nossas acções pelos caminhos da educação, o risco é sermos obrigados a corrigir a direcção pelos mecanismos criados para o efeito, como se deu com a senhora Dawn Butler.

Pena é a nossa coabitação quotidiana não dispôr de instrument­os semelhante­s, destes meios de imposição. Se os tivesse, diminuiria muito da indecência e da falta de decoro que testemunha­mos diariament­e, onde quer que estejamos.

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