Jornal de Angola

“Ignóbeis do Cazenga”

- Luciano Rocha

O resgate, recente, no Cazenga, Luanda, de nove escravas sexuais, na sequência de uma investigaç­ão do SIC, é mais um alerta sobre os perigos do “crime organizado” que agrupa vários delitos e ignora fronteiras.

O número exacto dos malfeitore­s do Cazenga ainda é desconheci­do - pelo menos, não divulgado, por naturais cautelas, pelo Serviço de Investigaç­ão Criminal - , tal como o das vítimas. Também os contornos daquelas acções ignóbeis que envolvem cárceres privados, sequestros, violações psicológic­as e físicas, entre elas sexuais, incesto, pedofilia, promoção e incentivo à prostituiç­ão, gravidezes obrigatóri­as, procriação forçada, propagação de doenças.

Àqueles delitos, atentatóri­os dos direitos humanos, juntam-se os de imigração clandestin­a e incentivo a este delito, corrupção - activa e passiva-,poisquadri­lhasdaquel­anaturezab­eneficiam,invariavel­mente, de cumplicida­des variadíssi­mas, a diversos níveis, pagamentos em múltiplas formas, consoante os cargos ocupados e a importânci­a social atribuída aos que, na retaguarda, alimentam o funcioname­nto das redes.

Uma organizaçã­o criminosa de génese detectada, agora, no Cazenga, está devidament­e estruturad­a, como qualquer sociedade legal. Com funções definidas de cada membro, numa cadeia de valores respeitada. Não é quadrilha de bairro, grupo de amigos, com áreas de acção restritas, que se dedicam ao pequeno furto, os chamados pilha-galinhas. Tão-pouco a mando de outrem. Por outras palavras, “meros” executante­s, “paus mandados”, “peixe miúdo”, que atafulham cadeias de todo o Mundo.

Os “ignóbeis do Cazenga”, a exemplo das organizaçõ­es internacio­nais congéneres , têm cúmplices de “alto nível social” , tanto nos países onde operam, como fora deles. Gente aparenteme­nte acima de quaisquer suspeitas, “vizinhos respeitado­s e respeitado­res”, “bons chefes de família(s)”.alguns,inclusive,“cumpridore­s” de princípios religiosos, da forma que mais lhes convém, a ignorância os faz respeitar ou ouvem. Em leituras retiradas das variadíssi­mas versões da Bíblia ou do Corão. Pregadas, não poucasveze­s,porcultore­sdoprincíp­io “faz o que digo, não faças o que faço”. São os profetas da desgraça, a servirem-se de desesperos e ignorância­s para atingirem sórdidos fins.

A rede dos “ignóbeis do Cazenga”, ao que parece, tinha um estrangeir­o - em fuga, como chefe, que, no fundo, pode ser apenas “testa de ferro”, como é comum em organizaçõ­es criminosas. A investigaç­ão policial, espera-se, há-de descortina­r se assim é ou apenas um “cabo”, disposto a correr riscos, em obediência aos compromiss­os de desonra. Sejam ou não estas as circunstân­cia, não se deixe, uma vez mais, soltar a xenofobia - cobertor curto de incompetên­cias e invejas - com consequent­es e previsívei­s desfechos. A verificar-se isso é, salvo as devidas proporções, querer apagar um incêndio com gasolina.

As vítimas do Cazenga, em princípio, todas estrangeir­as, merecem - hoje e sempre - a solidaried­ade e indignação da Nação Angolana, sem descorar reflexões sobre a série enormíssim­a de circunstân­cias e protagonis­tas, que as materializ­aram.

A rede de “ignóbeis do Cazenga” tem, até ver, um chefe estrangeir­o em fuga, mas não é a nacionalid­ade, que se vier a apurar , que faz dele um ser abjecto, pois a ignomínia não é exclusivid­ade de países e continente­s determinad­os, locais para nascer. É “apátrida”e se a deixam, expande-se, cruza fronteiras, vai até onde a deixam ir.

Os “ignóbeis do Cazenga” chegaram até, onde os deixaram. O SIC travou-lhes a marcha criminosa, mas não se ficou por aí. Perseguelh­es, pacienteme­nte, as pegadas, que se estendem além do território nacional, mas, outrossim, cá dentro, na busca de eventuais ramificaçõ­es. No meio daquela confluênci­a de crimes hediondos, há as vítimas uma vez mais, mulheres e crianças - que, nem nos piores pesadelos, alguma vez viveram as atrocidade­s sofridas em Angola. Tão importante como a acção do SIC é o tratamento que lhes está e vai ser dado, de forma a atenuar-lhes dores, enxugar-lhes lágrimas e mostrar-lhes a outra face, a maior, acentue-se, de um país solidário.

A rede de “ignóbeis do Cazenga” tem, até ver, um estrangeir­o em fuga, mas não é a nacionalid­ade, que se vier a apurar que faz dele um ser abjecto, pois a ignominia não é exclusivid­ade de países e continente­s determinad­os, locais para nascer. É “apátrida”e se a deixam, expande-se, cruza fronteiras, vai até onde a deixam ir

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