Uma liderança serena
Naquele que foi
o seu primeiro discurso à nação sobre a pandemia, numa altura em que ninguém parecia ter respostas acertadas sobre o que podia esperar a população, a chanceler alemã apelou calmamente à razão e à disciplina dos cidadãos para travar a disseminação do vírus, reconhecendo, como uma mulher que cresceu na Alemanha Oriental, que é difícil desistir das liberdades, mas sublinhou que, como um cientista advogaria, os factos não mentem.
Depois de um dos mais importantes discursos e ainda vestida com o mesmo casaco azul em que apareceu na televisão, Merkel foi até um supermercado local
para comprar comida, vinho e papel higiénico e foi levada calmamente até ao seu apartamento em Berlim. Para ela, foi uma paragem banal para compras, mas as fotos tiradas por alguém no supermercado foram partilhadas mundialmente, como um sinal de uma liderança serena no meio de uma tempestade global.
Durante a pandemia, Merkel reafirmou os seus pontos fortes tradicionais e teve uma possibilidade de se afastar das constantes disputas dentro da coligação que governava e nas guerras internas para encontrar um sucessor.
Com Merkel ao leme, a Alemanha demonstrou elementos de sucesso nas quatro fases da estrutura de preparação e resposta da OMS: prevenir, detectar, conter e tratar. No entanto, a partir de Outubro de 2020, o país viveu - em consonância com o resto da Europa - um grande aumento de casos
e mortes que perdurou até ao Verão de 2021.
O sucesso inicial no controlo da pandemia deu-se também por causa de um bom sistema de saúde e sólidas instituições científicas especializadas. O desenvolvimento precoce da capacidade de testagem, uma estratégia eficaz de isolamento de casos de risco e uma rede sólida de Unidades de Cuidados Intensivos também foram armas fundamentais para controlar o vírus.
A longevidade política de Merkel já é histórica. Entre os líderes democráticos da Alemanha pós-segunda Guerra Mundial, fica atrás apenas de Helmut Kohl, que levou o país à reunificação durante o seu mandato entre 1982-98.
Sobre um legado, Merkel insiste que devem ser os outros a julgar. Ainda assim, destacou algumas conquistas numa rara aparição de campanha há breves meses, começando com a
redução do número de desempregados, de mais de 5 milhões em 2005, para menos de 2,6 milhões em 2021.
Quando chegou a chanceler depois de Schröder, Merkel herdou um plano para sair da energia nuclear, mas acelerouo abruptamente após os colapsos da central japonesa de Fukushima, em 2011. Mais recentemente, deu início à saída da Alemanha da energia produzida a carvão.
Nos seus primeiros anos à frente do país, Merkel foi frequentemente referida como a “chanceler do clima”, mas também recebeu críticas por se mexer demasiado devagar; o Governo alemão, este ano, antecipou a data para reduzir as emissões de gases de efeito estufa para “zero líquido” até 2045, depois de um tribunal superior ter decidido que os planos anteriores colocavam o peso nos ombros dos jovens.
No discurso, Merkel elogiou,
ademais, as melhorias nas finanças públicas da Alemanha, o que permitiu uma paragem na acumulação de nova dívida a partir de 2014 e até ao início da pandemia. A oposição argumenta que Merkel economizou demasiado nos investimentos necessários em infra-estruturas.
“Também poderia falar sobre como salvamos o euro”, discursou. A abordagem à austeridade de Merkel foi profundamente ressentida em partes da Europa e controversa entre os economistas, mas permitiu que fosse superada a relutância para resgatar os países mais afectados pela crise económica. Seja qual for o veredicto final, Merkel tem razões para comemorar um fim histórico: Em 16 anos ao comando da maior economia da Europa, acabou com o recrutamento militar, colocou a Alemanha no rumo para um futuro ausente de energia nuclear e fóssil, permitiu a legalização do casamento
entre pessoas do mesmo sexo e introduziu um salário mínimo nacional.
Na língua de Goethe, há uma palavra que capta, provavelmente, o estilo retórico árido e inexpressivo de Angela Merkel: ‘vorsichtigkeit’, que significa, grosso modo, prudência. A líder alemã, que vai abandonar o cargo aos 67 anos, deverá deixar ao próximo chanceler a difícil tarefa de substituir alguém que uma recente sondagem mostra que teria o apoio para um fictício cargo de “presidente da Europa”.
Para além disso, o sucessor dos anos do “merkelismo” terá de liderar um país que regressa à normalidade e de fomentar uma economia que precisa de um plano ambicioso no póscovid-19. Tudo isto, ao mesmo tempo que terá de evitar um crescimento da extrema-direita que, na AFD, tem um veículo para se afirmar como a terceira força política do país.