É importante ouvir a rua
As ruas das cidades têm falas, que exprimem sentimentos de quem as habita, nela trabalha ou as visita, de alegria, lamento, expectativa, conformismo, admiração, indiferença, também de silêncios mostrados nos olhos, espelhos de vidas.
As vozes das ruas de cada cidade sobrepõem-se às algazarras que as caracterizam, funcionando como barómetros de sociedades heterogéneas que acolhe, mas só perceptíveis por quem as vive, lhes sente o pulsar do coração e lê nas rugas, que aumentam idades.
As conversas de rua das cidades tanto podem ser espontâneas - de alegria ou tristeza -, como calculadas ou encomendadas. Em qualquer das circunstâncias ouvidas apenas por quem quer e as sabe ouvir. Aquelas falas têm força, podem passar de boca em boca, numa espécie de hinos diversos feitos de tristezas, angústias, desesperos, desilusões, conformismo, mas, também de protestos, revoltas, raramente de júbilo sincero.
Luanda não foge à regra das grandes metrópoles. Ainda por cima, tem a caracterizá-la a desorganização, pelo que se a confusão pode, aparentemente, dispersar vozes, principalmente as de surdina ou a dos olhos, também tem o condão de as tornar mais velozes, ecoarem em catadupa.
As capitais, situem-se onde se situarem, reflectem os respectivos países, a nível dos mais variados sectores. Desde logo, o espaço público, por si só, no nosso caso, um amontoado de incongruências: águas putrefactas, que nem a pandemia actual inibe, mas, também, as aparentemente potáveis, de proveniências diversas, a escorrerem dias a fio, por ruas, passeios, do que restam de jardins, a que se juntam os buracos de todos os tamanhos e configurações; candeeiros acesos durante o dia a concorrerem com sol da hora das doze ou a comtrariar os apagados de noite, num convite permanente ao crime; também os semáforos eternamente desligados a aumentarem os indescritíveis tráfegos de peões e automóveis, que têm a companhia das passadeiras, destinadas a transmutes e carros, invariavelmente ocupadas por toda a espécie de viaturas... e por receptáculos de lixo domésticos.
A compor o “ramalhete” do desleixo luandense há, entre tantos, os exemplos da questão urbanística, na qual sobressaem arranha-céus envidraçados, que aumentam a temperatura ambiente e poluem a atmosfera motivados por milhares de aparelhos de ar condicionado e geradores de recurso. São marcos de um tempo recente que reflectem as inevitáveis vaidades da pequena-burguesia endinheirada que, entre nós, quis fazer de Luanda cópia do que viram lá fora. O pior é a maioria dos “inovadores” que não materializou os sonhos com dinheiros próprios. Além disso, na “fúria da imitação”, roubaram-nos sombras, ao derrubarem árvores frondosas, taparam corredores da brisa marinha e espatifaram praias, como as da Ilha, Rotunda, Corimba ou do Mussulo. Poluíram-nos, envenenaram-lhes as águas e fauna que as habita.
Outra nódoa a manchar Luanda chama-se toponímia. Pelo menos parte dela. Não basta uniformizar formas de escrever nomes bantu, para acabar com a salgalhada reinante, neste domínio. Tão ou mais importante, é dignificá-la, honrar a memória angolana, banindo, datas e nomes de indivíduos, ligados à repressão colonial.
Dois exemplos: a rua 28 de Maio, na Maianga, e o bairro Adriano Moreira. Por que permanecem aquelas designações na toponímia da capital? Desleixo? Pura ignorância? Como é possível haver em Angola uma artéria com aquela data, a lembrar o dia do derrube da primeira República (liberal) portuguesa, que abriu caminho à instauração da ditadura salazarista? E uma zona habitacional com o nome de alguém que foi ministro das Colónias ou como eles diziam do Ultramar?
As ruas têm falas, que exprimem sentimentos diversos, que é possível ouvir, mesmo quando feita de silêncio.