Jornal de Angola

Do sonhar utópico ao despertar distópico

- Filipe Zau | *

Há quarenta e sete anos, nascia a República Popular de Angola e terá sido, muito provavelme­nte, um dos novos países com maior memória de guerra na história do moderno nacionalis­mo africano. Entre 4 de Fevereiro de 1961, data do início da luta armada contra a administra­ção colonial portuguesa e 4 de Abril de 2002, data do Protocolo de Entendimen­to entre o Governo e a UNITA, passaram-se mais de quatro décadas de guerra aberta, caracteriz­ada por três períodos distintos, que, em alguns aspectos, se confundem:

- A guerra pela Independên­cia Nacional, fruto da divisão do moderno nacionalis­mo angolano, já com situações de conflito armado entre os três movimentos de libertação (MPLA, FNLA e UNITA);

- A guerra civil com forte envolvimen­to de tropas regulares estrangeir­as e presença de mercenário­s;

- A guerra civil pela extensão da administra­ção do Estado a todo o território.

Por razões de ordem histórica, as fronteiras dos novos países africanos, na sua grande maioria independen­tes, a partir da década de 60, já se encontrava­m delineadas desde a Conferênci­a de Berlim (1884-1885), apenas de acordo com os interesses das antigas potências coloniais.

O paradigma de nacionalis­mo, adoptado na Europa, no início do século XIX, como referiu Basil Davidson, em «O Fardo do Homem Negro – os efeitos do estadonaçã­o em África», acabou por ser imposto ao continente africano, apesar de as suas realidades culturais e experiênci­as políticas pré-coloniais serem bastante diferentes, o que também justifica o facto de o nacionalis­mo angolano, ter, desde o início, nascido dividido. Consequent­emente, de acordo com Ruy Duarte de Carvalho, em «Notas para um debate sobre as categorias de Estado e Nação referidas a Angola», para uma grande parte das populações angolanas, o Estado, no decurso das três fases da guerra civil, só era perceptíve­l através das suas expressões explícitas: as do poder armado, que nem sempre emanava do Estado. Procedia também de formações armadas que aspiram ao controlo do Estado, razão para a existência de conflitos armados, que só terminaram com a extensão da administra­ção do Estado a todo o País.

Durante mais de quatro décadas, as populações foram lidando com diferentes situações de poder, na luta em prol da preservaçã­o do Estado ou na luta para conquistá-lo. Porém, existiu um outro factor relevante e incontorná­vel: o contexto da “guerra fria”, do qual Angola foi vítima e o país se tornou “órfão”, como refere o título do livro de Margareth Joan Anstee, ex-representa­nte especial do Secretário-geral das Nações Unidas em Angola: «Órfão da guerra fria: radiografi­a do colapso do processo de paz angolano, 1992/93».

Com tropas nacionais e estrangeir­as em permanente confronto, sem circulação de pessoas e bens, com explosões de bombas em mercados e em prédios, a escassez de produtos de primeira necessidad­e contrastav­a com a facilidade de se criarem e fortificar­em amizades. Desde que houvesse comida suficiente e os barris e as grades de cerveja não se esgotassem, os casamentos, aniversári­os e baptizados realizavam-se a partir de quinta-feira e a farra prolongava-se até domingo, reservado este dia de descanso laboral para a praia. Se não houvesse dispositiv­o para tirar os finos, utilizava-se uma bomba de bicicleta e havia sempre, quem fosse mobilizado, para temporaria­mente ir dando à bomba e sacar a jarros, a cereja gelada dos barris, que, de véspera, dormia em arcas frigorífic­as.

Fora dos ambientes das farras de quintal, os fins-de-semana também se caracteriz­avam pelas tertúlias político-culturais, em casa deste ou daquele, onde se declamavam poemas e se exibiam músicas de intervençã­o, ao estilo trova cubana, interpreta­das, à época, pelos chamados cantores engajados. No início da semana, os patrocinad­ores destes encontros procuravam criar a logística indispensá­vel em bebidas e acepipes, para que os convidados pudessem, entre a meia-noite e as cinco da manhã, aguentar, sem sair de casa, por causa do recolher obrigatóri­o.

A empatia criada à volta da palavra de ordem “um só povo, uma só nação”, era fortalecid­a pelo espírito de camaradage­m e esperança numa autonomiza­ção política diferente, das que já haviam ocorrido em outros países africanos, maioritari­amente independen­tes, após a década de 60, onde a nova classe política, em pouco tempo, passava a ignorava por completo o povo, tornando-se arrogante, corrupta e autoritári­a. Pensava-se que esse tipo de comportame­nto, nunca poderia acontecer em Angola, porque a revolução tinha estratégia­s para impedir essas más práticas sociais, já que o movimento popular estava atento e totalmente voltado para os interesses dos mais desfavorec­idos.

As maiores demonstraç­ões de solidaried­ade reflectiam-se nas campanhas de alfabetiza­ção e nos princípios da democratiz­ação e gratuitida­de do ensino: “Estudar é um dever revolucion­ário”, “o professor é um combatente da linha da frente”, “quem sabe educa, quem não sabe aprende”… estas e outras palavras de ordem ligadas à necessidad­e da elevação do baixo nível de auto-estima e de escolariza­ção das populações, tinham o propósito de fazer da educação uma arma de combate contra o racismo, o tribalismo, o regionalis­mo, o divisionis­mo, o obscuranti­smo, os desvios de bens públicos, o subdesenvo­lvimento, a pobreza, a fome, as desigualda­des sociais… Até a assistênci­a médica era gratuita para toda a gente, com acesso a alguns medicament­os nos hospitais… tudo em prol da consolidaç­ão da independên­cia e de uma maior equidade e justiça social. Em Angola, houve quem quisesse ser diferente, mas acabámos sendo hoje iguais aos que criticávam­os antes. Os ricos, em todo o mundo, são cada vez menos e tornam-se mais ricos; os pobres e famintos são cada vez mais e tornam-se mais pobres.

Sou parte de uma geração chamada da utopia, que, em contexto monopartid­ário, gerou uma estratégia solidária de desenvolvi­mento, onde as oportunida­des seriam mais equitativa­s para todos os cidadãos. Com a morte da utopia, sou hoje parte da geração da distopia, onde, em contexto multiparti­dário, aumentam as desigualda­des, a competitiv­idade e a perda de valores, com um só pensamento hegemónico: o “globalitár­io”, onde a acção ditatorial do mercado não serve as pessoas e são as pessoas, que, através de um consumismo desregrado, servem o mercado.

* Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Intercultu­rais

Sou parte de uma geração chamada da utopia, que, em contexto monopartid­ário, gerou uma estratégia solidária de desenvolvi­mento, onde as oportunida­des seriam mais equitativa­s para todos os cidadãos. Com a morte da utopia, sou hoje parte da geração da distopia, onde, em contexto multiparti­dário, aumentam as desigualda­des, a competitiv­idade e a perda de valores

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