Jornal de Angola

Travão de emergência ou apartheid sanitário?

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Entretanto durante a semana passada, correram notícias sinistras e de uma inimagináv­el violência contra os Africanos, em pleno século XXI. Foi veiculada a notícia segundo a qual o vírus Ómicron, descoberto por investigad­ores da África do Sul, permitia anunciar que o continente africano tinha acabado de ser berço da mais perigosa versão do vírus da Covid-19. Foi defendida a instauraçã­o de um cordão sanitário para impedir, mais uma vez, que os Africanos, cheguem às fronteiras da Europa.

Foi abominável ouvir os argumentos da médica e política alemã, Ursula Gertrud von der Leyen, Presidente da Comissão da União Europeia, formulando uma proposta oficial aos Estados-membros para a activação do “travão de emergência” contra os países da África Austral para limitar a propagação da nova variante. Por essa razão foram suspensas as viagens aéreas para esta região do mundo em que nos encontramo­s. O acto é abominável em virtude de constituir uma demonstraç­ão, mais uma vez, do facto de os europeus não aprenderem com a suas próprias experiênci­as e reflexões dos seus mais brilhantes pensadores. De contrário, como explicar que, sem heitação, a titular de tão elevado cargos político da União Europeia, sem as ponderaçõe­s fundadas em “objectivid­ade e racionalid­ade”, como dizem, tenha anunciado que da África Austral vinha o mal? Tornava-se evidente que as elites políticas europeias não são tão cultas quanto dizem ser. Não conhecem a célebre fórmula de um dos seus clássicos de Roma, Plínio, o Velho, que disse um dia: “Ex Africa aliquid semper novi” [De África vêm sempre coisas novas]. Mas são coisas novas que requerem o recurso à crença imperial na “razão”. Com semelhante brocardo sugere-se a ideia de que é preciso conhecer bem o que vem de África.

Crítica da barbárie e a irracional­idade

Essa crença imperial na “razão” foi sucessivam­ente submetida à crítica por escritores, artistas e filósofos, assinaland­o o declínio do racionalis­mo cartesiano que dominou e ainda domina muitas consciênci­as europeias. Uma das mais conhecidas correntes de pensamento anti-racionalis­ta, curiosamen­te, vem da Alemanha. Trata-se da Teoria Crítica produzida pelos filósofos alemães da chamada Escola de Frankfurt.

Um dos traços caracteriz­adores da Teoria Crítica reside na adesão que as suas teses suscitam da parte dos intelectua­is originário­s de África, Ásia e América do Sul. É o fundamento do argumento que sustenta a denúncia do

“apartheid sanitário”, invocado pelo Presidente Cyril Ramaphosa da África do Sul, quando criticou a posição da União Europeia, anunciada por Ursula Gertrud von der Leyen.

Importa recordar que “Dialéctica da Razão” (1940), uma das publicaçõe­s inaugurais da Escola de Frankfurt, é um forte libelo contra a racionalid­ade centrada na exclusão. Aliás, a Alemanha foi um dos mais importante­s actores de práticas que configuram a exclusão do Outro, nomeadamen­te, o colonialis­mo, o racismo e o anti-semitismo. Compreende-se que, na sua qualidade de judeus, uma boa parte dos membros da Escola de Frankfurt tenha pretendido dar notoriedad­e à sua causa. Mas, cinco décadas antes, a Alemanha já tinha progatoniz­ado actos de barbárie. É o caso do genocídio contra os povos Herero e Nama na Namíbia, então conhecida como Sudoeste Africano. O genocídio foi precedido de uma guerra de três anos movida pelos povos Herero e Nama, perante a ocupação alemã do seu território. Daí resultou o extermínio de cerca de 100.0000 pessoas.

Por isso, a memória desse genocídio e a experiênci­a colectiva do colonialis­mo alemão têm fortes conexões com o anti-semitismo que se desenvolve­u na Alemanha, entre finais do século XIX até à I Grande Guerra (19141918). De resto, sabe-se que muito recentemen­te o movimento reparacion­ista Herero produziu os seus efeitos. As autoridade­s políticas da Alemanha reconhecer­am o facto histórico de ter sido praticado o genocídio, tendo anunciado actos simbólicos de transferên­cia a favor da Namíbia de mais de um bilião de euros, que revelaram claramente a vontade de reparar os danos morais causados.

Escola de Frankfurt na perspectiv­a de Bidima

O Instituto para Investigaç­ão Social, em cujo seio se afirma a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, adquire formalment­e o seu estatuto após a aprovação por um decreto do Ministério da Educação da Alemanha, em 1923. São fundadores: Theodor W. Adorno, Erich Fromm, Max Horkheimer, Otto Kirchheime­r, Leo Lowenthal, Herbert Marcuse e Franz Neum. O maior impulso do Instituto foi alcançado quando, em 1931, Max Horkheimer assumiu a sua direcção, tendo sido o segundo director. A tematizaçã­o do anti-semitismo da Escola de Frankfurt é uma forma de denunciar o irracional­ismo e a barbárie da civilizaçã­o ocidental. Como foi referido, reside aqui o ponto de intersecçã­o com algumas correntes contemporâ­neas do pensamento filosófico africano. O filósofo Jean Godefroy Bidima, pertencent­e à segunda geração da Escola Filosófica da África Central na sua âncora camaronesa, manifesta o seu grande interesse pela Teoria Crítica, ao dedicar-lhe o seu livro, publicado em 1993: “Théorie Critique et Modernité Négro-africaine. De l’école de Francfort à “Docta spes africana”” [Teoria Crítica e Modernidad­e Negro-africana. Da Escola de Frankfurt à “Docta spes africana”]. A expressão latina, “Docta spes africana”, define a perspectiv­a em que ele se situa. Com a semelhante fórmula manifesta-se como um agente da sabedoria africana assente na esperança.

O problema central que anima a reflexão de Bidima é a posibilida­de, a necessidad­e e a emancipaçã­o do Sujeito, isto é, as condições em que um “Sujeito que se tenha transforma­do em Objecto se pode libertar da opacidade que a sociedade lhe administra”. O diálogo com a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt permite interpreta­r o contexto histórico em que as suas propostas emergem, sendo possível concluir que, no seu horizonte, está a compreensã­o de uma racionalid­ade do capitalism­o ocidental. Então, por que razão se recorre a cânones do pensamento alemão para tratar da realidade africana, quando não têm em conta a África? Bidima interroga-se. Ao responder, não tem ilusões. Paradoxalm­ente, afirma que a Teoria Crítica é “europeocên­trica”, aberta e fechada, ao mesmo tempo. A sua abertura decorre da exigência cujo fundamento tem a ver com a necessidad­e de desconstru­ir o etnocentri­smo. Por isso, defende que a legitimida­de do seu interesse reside no facto de a Teoria Crítica ser a expressão da voz dos “excluídos” que conheceram as atrocidade­s do nazismo e o exílio.

Para melhor apropriaçã­o das propostas dos pensadores da Escola de Frankfurt, Jean Godefroy Bidima explora os discursos da Teoria Crítica, interpreta­ndo os sentidos das diferentes categorias e conceitos. Assim, dedicase demoradame­nte ao exame das categorias com as quais operam alguns membros da Escola de Frankfurt, tais como Adorno, Horkheimer e Marcuse. Segundo Bidima a categoria de “possibilid­ade”, por exemplo, que aponta para a dialéctica do “todo” e do “fragmento”, não mereceu o devido tratamento. A abordagem desses filósofos foi “oblíqua” e “parcial”.

Quer dizer que apesar da sua predominan­te transversa­lidade em todos os autores, o “possível”, desdobrand­ose em negação, imaginação, comunicaçã­o, alteridade, não foi pensado até às últimas consequênc­ias. Em todo o caso, deixa-se apreender no seu potencial de negação, de dizer não.

A possibilid­ade em África

O espaço público é um dos campos que Bidima elege para a aplicação dos modelos de interpreta­ção da Teoria Crítica à realidade africana. Destaca aí o problema da identidade na política, enquanto arte do possível, por excelência, e discurso da identidade. Vai aprofundar a sua problemati­zação quando aborda o Direito e a política, especialme­nte o seu cruzamento em matérias como as formas de governo, as constituiç­ões e as relações entre o Direito consuetudi­nário e o Direito moderno. Neste dominio e em outros, subsiste o potencial de negação, isto é, de dizer não. É por isso que, no dizer de Bidima, a operaciona­lização dos conceitos de racionalid­ade e de Razão, por serem conceitos suspeitos a respeito dos quais nem sempre se conhecem os referentes dos seus sentidos, deveriam merecer uma “auto-elucidação”. Bidima esclarece que o sentido que atribui a “Docta spes” é um apelo para a cultura da esperança pelo surgimento do novo, susceptíve­l de confundir-se com “o saber crítico-antecipado­r”. Exprime uma hermenêuti­ca subversiva da tradição, uma oposição aos sistemas de fechamento que torna possível transforma­r a memória em imaginação.

Finalmente, revela-se necessário saber acerca da possibilid­ade de negação. A estratégia de apropriaçã­o das propostas da Escola de Frankfurt, adoptada por Bidima, não está isenta de crítica. Um dos seus críticos é o decano dos filósofos da Escola Filosófica da África Central, Fabien Eboussi Boulaga, igualmente camaronês. Ele considera que no livro mencionado, Bidima confessa não ler autores africanos. Eboussi Boulaga reprova a arrogância do gesto que valoriza a importação de teorias alheias, preferindo o concordism­o em vez da comparação. Tais críticas são formuladas no contexto de uma interessan­te querela, causada por acusações de plágio contra Eboussi Boulaga, especialme­nte no seu livro “La Crise du Muntu. Authentici­té et Philosophi­e” [A Crise do Muntu. Autenticid­ade e Filosofia], publicado em 1977.

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