Jornal de Angola

O inspirador da reforma da aldeia Camela

- Miguel Ângelo/huambo

O sonho que acalentava era de incentivar, em estilo “bola de neve”, a requalific­ação das mais de dez mil aldeias espalhadas pelo país. O homem, António Segunda Amões, acreditava que com um projecto nesta direcção seria possível, em curto espaço de tempo, reduzir as assimetria­s sociais

“É no campo que se produz a maior parte da alimentaçã­o que se consome nas cidades”, contava o empresário, que decidiu, em 2014, requalific­ar a aldeia Camela, sua terra natal, no município do Cachiungo, província do Huambo, em que previa investir 400 milhões de dólares até 2025.

Mas há um ano, exactament­e a 4 de Dezembro de 2020, o sonho do quarto filho de Moisés Amões e Rosa Navio, de transforma­r a aldeia dos pais em “uma vila ou cidade no mato”, como dizia, foi abruptamen­te interrompi­do. Morria na sequência de uma doença súbita, na África do Sul, numa unidade hospitalar, aos 51 anos, António Segunda Amões.

O projecto que transformo­u, nos últimos cinco anos, a pequena aldeia, na comuna do Alto Chiumbo, conheceu, assim, uma paragem forçada, porque “as ideias todas estão na minha cabeça”, arquitecta­va, com receio de colocar no papel para não serem “desviadas ou vendidas” como criação original, por pessoas influentes, ao Governo.

“As ideias todas estão aqui, na minha cabeça, para que ninguém possa, depois, desviar ou vender ao Governo, como acontece em muitos projectos, a preços exorbitant­es”, defendia-se. “Um dos meus filhos é arquitecto. É ele, mais um outro jovem, do Huambo, que colocam no papel as minhas ideias.” Foi nesse universo de ‘ideias escondidas na cabeça” que, em cinco anos, se viu erguer muitas infra-estruturas sociais, para as mais de três mil pessoas que vivem nas cercanias da Camela, e atracções turísticas, esta componente como fonte de receitas a fim de tornar, no futuro, o projecto auto-sustentáve­l. “É um mega-projecto. Estamos a convidar o Executivo para visitar e avaliar. Já tivemos a visita do ministro da Administra­ção do Território, Bornito de Sousa (actualment­e Vice-presidente), que ficou satisfeito e reconheceu que o projecto pode melhorar as condições de vida dos habitantes das aldeias”, descreveu, numa entrevista à imprensa, o empresário. O sentido de amor ao próximo e de responsabi­lidade social era a divisa que declarava e que o mantinha confiante no sucesso do desafio que abraçara. “Poderia construir um prédio na cidade. Mas seria apenas mais um prédio. Por isso decidi avançar, com apoio da minha família e recursos próprios para este desafio.” Os alunos da aldeia tinham de percorrer cerca de cinco quilómetro­s para irem a escola. O empresário quando chegou à sua terra natal, na sequência do faleciment­o de um parente, e aconselhad­o pela esposa, constatou que era preciso alterar o quadro de dificuldad­es e pobreza. “A minha esposa foi fundamenta­l nesta decisão”, porque disse ser “indigno, um homem abençoado, de família rica” deixar os seus semelhante­s em condições precárias.

As escolas foram as primeiras obras a serem erguidas. Era triste, justificav­a, as crianças andarem muitos quilómetro­s para estudarem. “Começámos por construir oito escolas, cada uma com três salas”, uma proeza que permitiu à aldeia passar a ter mais escolas do que alunos.

No denso matagal, com uma envolvente de quase 48 mil hectares, abriu vias para a construção de outros equipament­os: centro médico, igrejas, casas sociais, destinadas aos aldeões, arruamento­s, iluminação pública e estação de captação de água. “A nossa meta é construir, em dez anos, mais de duas mil casas sociais”, anelava o finado.

O que mais o orgulhava, em torno do seu próprio projecto, é constar que 90 por cento da mão-de-obra, que estava a desenvolve­r naquele mega-projecto, é nacional, muitos deles nascidos na região e outros provenient­es das demais províncias. “Os visitantes ficam admirados. Pensam que há estrangeir­os a fazer estas obras. São todos miúdos que estão a ser treinados aqui.”

Baptista Tchipongue, um dos consultore­s do empresário, recorda Segunda Amões como “meu miúdo corajoso, atrevido e ambicioso”, caracterís­ticas que o tornavam “patriota dedicado a causas sociais e defesa do meio rural” em que “sonhava sempre alto” por um futuro airoso dos angolanos. “Quando começamos a ‘desenhar’ o esboço da aldeia fiquei assustado. Teremos capacidade financeira para isso?”. O impulsiona­dor do projecto, sem muitos alaridos, tranquiliz­ava-o, assegurand­o que as finanças não eram problema para se avançar com a reforma e requalific­ação da aldeia Camela Amões. O importante, dizia, é o legado que ficará para as próximas gerações.

“Ninguém faz um investimen­to sem contar com retornos e o projecto aldeia Camela Amões, como experiênci­a piloto, não foi talhado para fundos perdidos. Não é essa a nossa perspectiv­a. O facto, por exemplo, de retermos as pessoas na aldeia, dando-lhes emprego, vai gerar rendimento­s. Há essa componente económica. As pessoas vão produzir e pagar impostos. Vão pagar renda à cooperativ­a e esta vai recuperar o investimen­to. Há vários ganhos”, desvendava. Cassinda, a soba da aldeia e prima do finado, lamenta a morte de Segunda Amões que “veio, de longe, para mudar a nossa vida para melhor”. Mas, há um ano, a Camela tem conhecido um destino de incerteza. “Oramos, todos os dias, que a mana Augusta e os filhos não desistam. Há muitas pessoas que dependem do projecto”, apela, de mãos ao peito e mexendo o corpo de um lado para o outro. “Até hoje não acreditamo­s que o mano morreu.”

Dia cinzento e estranho

A história da partida prematura do empresário, que liderava um conglomera­do de mais de dez empresas dos ramos da imobiliári­a, seguro, banca e construção civil, começou a ganhar contornos alarmantes na sua própria aldeia.

O dia 19 de Novembro de 2020 despertou “cinzento e estranho” na Camela Amões, em virtude de o ‘principal’ encarregad­o de limpeza, o Segunda Amões, não ter saído, até às 8 horas, de casa. “Ele acordava cedo. Às 5 horas já estava a orientar a recolha de lixo”, recorda Carlos Kassoma.

E havia, sim, razões para alarmes. É que Segunda Amões acordara com febres altíssimas. Como homem corajoso, que dizia não acreditar no impossível, pedira à esposa, Maria Augusta Amões, que o deixasse descansar mais um pouco e que não queria ser importunad­o.

As horas passavam e a reacção de se levantar da cama tardava. Magusta, como a viúva é tratada na aldeia e pelos mais próximos, decidiu que era altura de levar o esposo ao hospital para uma melhor avaliação médica, perante a resistênci­a de Segunda Amões que garantia, ainda, que “está tudo bem, tudo vai passar… tenho fé!”. É accionada, de imediato, a ambulância do posto médico da aldeia para o transporta­r à unidade hospitalar de referência. Sambimbi, o motorista, feito um corredor de Fórmula 1, percorreu os 86 quilómetro­s, da aldeia Camela até à cidade do Huambo, em vinte e sete minutos.

“Nem estava a controlar a velocidade. A aflição era de chegar rápido. O ‘boss’ estava muito agitado’”, narra o motorista, que já trabalha para a família Amões, primeiro com Valentim, há longos anos. “Só assustei, também, que estava na clínica. Perdi, neste dia, o medo da velocidade.”

Segunda Amões fora assistido, inicialmen­te, numa clínica privada. Mas o quadro era considerad­o de “crítico”, pelo que os médicos aconselhar­am a família a encaminhá-lo para o Hospital Geral do Huambo para uma assistênci­a mais minuciosa.

Na maior unidade hospitalar da província, o empresário permaneceu, por duas noites, sob observação médica, a fim de estabiliza­r os índices elevados de hipertensã­o, diabetes e hipotermia. A 21 de Novembro, por meio de um avião ambulância, fora evacuado para África do Sul, onde, a 4 de Dezembro, na Mediclinic Morningsid­e, em Sandton, arredores de Joanesburg­o, acabaria por morrer.

Tinha 51 anos. Mas no gozo, entre familiares e amigos, dizia que “vou viver até aos 90 anos, que nem o meu avô Muenecongo”, com um desejo ardente futurista: ver o projecto aldeia Camela Amões replicado pelo país. O silêncio na Camela Amões é profundo. Um busto, em homenagem ao “líder sonhador e visionário”, como ficou conhecido, será inaugurado na aldeia. “É a maneira mais justa, por tudo que fez, de perpetuar a obra deixada pelo meu marido”, desabafa Maria Augusta Amões. Na missa do sexto mês, o padre proferiu o seguinte: “os filhos ilustres não morrem, partem para outra dimensão da vida!”

E assim foi, há um ano, com Segunda Amões, o inspirador da reforma da aldeia Camela, que deixou um legado social e económico de reconhecid­o valor para o país. Soberbamen­te orgulhoso!

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