Jornal de Angola

Tropa bisante

- Augusto Cuteta

A refeição está à disposição. Às pressas, os militares servem do pouco que há para todos. O inimigo está à espreita. É preciso que se coma e arrume o lugar na trincheira ou noutra zona segura, para fugir às armadilhas das tropas opositoras.

Entre os novos soldados, acampados nas matas de Moxico, está Marcelo. Marcelo é um jovem comilão. Desde cedo, ainda no seio familiar, despertou a sua boa atracção pelo garfo. É um bom apreciador de pitéus. Pita que pita. Aliás, quando o assunto é encher a pança, ninguém o tira. Ele é uma espécie de Job, Zico, Ndunguidi, Jesus, Maluca, Cristiano, Messi, Zidane, Maradona, Pelé... tudo junto num só kit. O homem é mesmo um guloso!

Nesse seu ano e meio de vida militar, dos quais seis meses de recruta e 12 outros a experiment­ar os encantos das matas de Angola, o cabo Marcelo esqueceu-se de uma frase que o pai sempre repetiu em casa, durante as refeições: “Tropa bisante morre na guerra e em mãos inimigas”.

Aliás, em casa de Marcelo, essa frase é, ainda, uma espécie de canção para os membros da família do jovem tropa, de 22 anos. É a forma que todos adoptaram para recordar o membro ausente da família, por questões patriótica­s, quando voltasse a bisar a comida, sem pensar se os outros já teriam comido ou não.

Marcelo, em tão pouco tempo, esquece essa lição de vida. E, depois da primeira sentada, vai em direcção às panelas, que se encontram em cozinha improvisad­a, para conseguir mais uma rodada. Prato na mão esquerda e colher à direita, o homem, solteiro, mas pai de uma menina de dois anos, sente um silêncio total do lado dos colegas.

Marcelo ainda olha atrás, para o grupo, quando terá tido a sensação de ter ouvido alguém gritar baixo: “Tropa bisante morre na guerra e em mãos inimigas”. Mas, a gula fala mais alto. E continua.

Até aqui está tudo bem. Mas não tarda muito para três balas, saídas de uma rajada de tiros, atingirem, surpreende­ntemente, o corpo enorme do jovem de 1,85 de altura e 120 quilos. Os colegas reagem a tempo e os inimigos abandonam a zona, depois de uma pesada troca de tiros, durante uns 45 minutos.

Marcelo está imobilizad­o. Não sabe se vive, depois de sentir que uma das balas está presa no crânio. Tem sangrament­o em todo o corpo. Mas, também, sabe que é forte e precisa sobreviver.

O jovem militar é trazido a Luanda, para receber uma assistênci­a médica e medicament­osa mais eficiente. Nesse momento, recebe visitas constantes de familiares e amigos. E isso ajuda na recuperaçã­o de Marcelo.

Depois de quatro meses de internamen­to e tratamento, no Hospital Militar, Marcelo está em casa dos pais, onde cumpre o repouso médico. Os velhos e os três irmãos cuidam dele como um menino. Aliás, é o caçula da família.

E, depois de duas horas, neste primeiro dia em casa, chega a hora da refeição. Marcelo, embora mais civilizado, come rápido.

Os povos do cubico perguntam se ele quer mais um pouco de comida. Eles sabem que o jovem gosta de bisar. Marcelo olha para todos e num tom aconselhad­or responde:

- Não. Chega. Uma vez basta. Nem sempre devemos encher a barriga. O importante é comer alguma coisa e pensar nos que ainda podem vir. Aliás, a comida atrai o inimigo. E o tropa bisante e distraído morre na guerra em mãos inimigas -, rematou.

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