Jornal de Angola

Poluição sonora como ameaça à segurança comunitári­a

- Luís Kandjimbo |* *Ensaísta eprofessor­universitá­rio

No decurso das últimas semanas, a segurança desta comunidade a que pertencemo­s mereceu atenção da Polícia Nacional, quando ouvimos o seu porta-voz reagindo ao clamor dos pescadores angolanos que denunciara­m assaltos e falta de segurança nas águas da costa angolana, onde desenvolve­m a sua actividade profission­al. Mas há outros actos nocivos sobre os quais as denúncias são, aparenteme­nte, silenciosa­s. Por isso, não têm a notoriedad­e desejada. É o caso da poluição sonora, considerad­a, por vezes, como invisível ameaça à paz ambiental, mas ao mesmo tempo tida como um perfeito exemplo de impunidade. Com a presente reflexão opero com um tipo de poluição sonora cuja fonte de ruído é a execução de música alta ao ar livre. Vou ao longo do texto designá-la como poluição musical.

Ruído indesejado

A paisagem urbana de Angola tem vindo a sido a ser perturbada por agentes e pela prática de actos que configuram exemplos de ruído indesejado. Os intermiten­tes alívios e agravament­os dos confinamen­tos a que nos sujeitamos, durante os sucessivos estados de calamidade devido à Covid-19, permitiram desvendar a tipologia de fontes de ruído e comportame­ntos imorais dos habitantes que residem nas cidades do nosso País. Uma das demonstraç­ões de tais vícios passou a ser a execução pública de música ao ar livre, nas igrejas, estradas e ruas dos bairros ou ainda nos condomínio­s, apartament­os e quintais com vizinhança. Parece necessário reflectir sobre essas fontes de ruído, tendo em conta, especialme­nte, a sua duração e o per í odo do dia em que s e tornam activas.

Portanto, a poluição musical é o tópico da nossa conversa. Esta proposta assenta no seguinte pressupost­o. Se o comportame­nto predatório dos humanos, perante a natureza e o ambiente, ocorre sempre no quadro de uma sociedade organizada, o critério basilar para a sua qualificaç­ão tem fundamento comunitári­o. Assim, ao atomismo ou à supremacia do princípio da liberdade do indivíduo sobre a comunidade, não pode ser atribuída função axiológica, porque quem não pensa nos seus concidadão­s, não pode exigir retribuiçã­o do respeito desejado. Colocada a questão nestes termos, não posso ignorar a controvérs­ia que aí está implícita. Mais uma vez, faz-se alusão ao debate que nos campos da filosofia política e na ética opõe comunitari­stas a liberais.

Liberdade e produção de ruído

A actividade de poluição musical ou produção intensa de ruído é muitas vezes confundida com manifestaç­ões do exercício de liberdade. Neste sentido, este tipo de poluição pareceria exprimir o exercício de uma liberdade negativa. É o que acontece, por exemplo, quando argentário­s e falsos melómanos, detentores de estabeleci­mentos comerciais ou empresário­s de entretenim­ento, igrejas e seitas religiosas promovem a execução pública de música ao ar livre, com o sentimento de não existir qualquer tipo de impediment­o ou coacção para a realização de tais actividade­s, fora dos recintos destinados para actividade religiosa, festas, entretenim­ento ou espectácul­os. Trata-se de uma interpreta­ção dos tipos de “liberdade negativa”, tal como a classifica­va o filósofo russo-britânico Isaiah Berlin (1909-1997) ou simplesmen­te “liberdade de agir”, centrada na acção, de acordo com o filósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004).

Se se tratasse de verdadeiro­s exercício de liberdade, esses comportame­ntos obedeceria­m a uma orientação moral e teriam uma sustentaçã­o jurídica. No contexto angolano, qual seria o enquadrame­nto para semelhante­s formas perversas de moralidade?

Para o teólogo democrata-congolês Bénézet Bujo, o exercício da liberdade em África, enquanto comportame­nto moral, obedece a um princípio fundamenta­l do pensamento africano, se

gundo o qual “eu sou porque somos e porque somos, eu também sou”. É o princípio que tem a sua síntese na expressão latina “Cognatus sum, ergo sum”. As formas perversas de moralidade a que me refiro constituem uma manipulaçã­o desse princípio, já que privilegia­m o sentimento de que o indivíduo é uma ilha, um átomo isolado. Do ponto de vista sociológic­o, pode dizer-se que estamos perante uma ostensiva forma de anomia na sociedade angolana. Na perspectiv­a da filosofia política, é a advocacia do estado de natureza, o vazio de segurança individual.

Como veremos em seguida, faz sentido procurar respostas para s ab e r s e o exercício de liberdade religiosa e da liberdade cultural é compatível com a produção de ruído, quando assistimos a manifestaç­ões e efeitos devastador­es das tecnologia­s do som na paisagem ambiental angolana, onde a produção de ruído vai progressiv­amente dando sinais de triunfos e danos. A paz urbana fica afectada com os poluentes sonoros, emitidos através de altifalant­es e colunas estereofón­icas em recintos abertos, ao ar livre. Isto ocorre em lugares onde se concentram pessoas, rezando, dançando, divertindo- se e consumindo bebidas alcoólicas, como se não existissem normas. Mas não há anomia. Existem dispositiv­os legais que qualificam a poluição musical como transgress­ão administra­tiva. Além disso, regista-se ainda a violação dos direitos de autor, em virtude de se proceder à execução pública de música ao ar livre, sem a devida autorizaçã­o, de acordo com a legislação sobre a propriedad­e intelectua­l.

Embora estejamos perante casos de comportame­ntos imorais que juridicame­nte são censurávei­s com multas e outras sanções de carácter administra­tivo, há quem admita a possibilid­ade da criminaliz­ação da poluição sonora. Representa­ndo uma prova de exercício abusivo da liberdade e de ofensa à propriedad­e intelectua­l dos artistas, esse exercício verifica-se de igual modo nos cultos religiosos em que se recorre à produção ruidosa de música ao ar livre.

Um poluente ambiental

Não sendo apenas um poluente ambiental, o ruído é uma ameaça à ordem e segurança públicas. Se a saúde pública constitui uma dimensão importante da existência de uma comunidade, não há dúvidas: a poluição sonora é um problema de segurança.

De acordo com as definições da engenharia acústica, o ruído é um som indesejado produzido pela acção humana e que se propaga a uma velocidade que depende da qualidade do material ou substância por meio do qual se produzem as ondas e a pressão sonoras. Existe uma unidade de medida por meio da qual se determina a intensidad­e ou o volume do ruído. Designa-se por decibéis. A este propósito, facilmente se conclui que nas nossas cidades, principalm­ente em Luanda, os ouvidos dos habitantes e dos animais domésticos suportam níveis proibidos de decibéis que poluem o ambiente.

A Organizaçã­o Mundial da Saúde classifica o ruído musical como poluente sonoro que causa danos irreparáve­is ao ser humano. O que se reflecte ao nível fisiológic­o, psicológic­o e na qualidade de vida. Um dos seus efeitos mais nefastos é a perda de sono com consequênc­ias graves nos níveis de tensão arterial e irritabili­dade.

Em todo o caso, a poluição musical viola normas morais e jurídicas. Se dela resulta a violação de regras, será possível prevenir que isso aconteça e assim controlar os níveis de ruído? Nos meios urbanos, onde o fenómeno parece ser mais grave, quem protege as vítimas de ruído indesejado que se produz?

Há razões para acreditar na capacidade de controlo da poluição musical e repressão dos actos que lhes dão origem. Uma delas reside no facto de existir em Angola legislação específica e instituiçõ­es investidas de autoridade para o efeito. Estou a fazer alusão à Lei das Transgress­ões Administra­tivas, publicada em 2011, com fundamento na necessidad­e de “transforma­r as zonas rurais e urbanas mais aprazíveis ao convívio humano”. Por transgress­ão administra­tiva entende-se “acção ou omissão dolosa ou negligente cujo resultado perturba ou venha a perturbar o ambiente, o sossego, a ordem e a tranquilid­ade pública, a segurança das pessoas e bens, a higiene e saúde pública […]”.

A resposta àquelas duas perguntas permite concluir que, no plano das garantias, não há anomia. Isto quer dizer que, em princípio, não há vazio em matéria de segurança para as vítimas da poluição musical sonora. No entanto, a prática ainda não dá provas disso.

Ameaça à segurança

Reitero a ideia. O ruído é uma ameaça à segurança pública. A definição legal da poluição sonora, de acordo com a referida Lei das Transgress­ões Administra­tivas, sugere efectivame­nte a operaciona­lização do conceito de segurança. Na verdade, o tipo de poluição com o qual ilustramos a nossa reflexão, isto é, a poluição musical ofende valores importante­s para a vida humana, designadam­ente, o ambiente, o sossego, a ordem pública, a tranquilid­ade pública e a segurança das pessoas. Como se sabe, actualment­e a definição de um conceito operatório de segurança, não é nem exclusivam­ente militar, nem circunscri­ta às relações internacio­nais. A segurança é aqui um substantiv­o que significa protecção. A sua adjectivaç­ão permite identifica­r o sujeito passivo que dela beneficia e qualificar o tipo de protecção que se garante. Estão em causa a segurança comunitári­a, a segurança ambiental e a segurança individual. Encontramo­s o fundamento de tudo isso no artigo 36º da Constituiç­ão da República de Angola. Nele se garante o direito à liberdade física e à segurança individual.

Perante a ameaça que a poluição musical representa e tendo em conta o seu âmbito territoria­l, o Estado, através das i nstituiçõe­s que exercem a sua autoridade, tais como a Polícia, é o sujeito activo que garante os três tipos de segurança: a) segura nça c omunitária; b ) segurança ambiental; c) segurança individual. É o que dispõe o artigo 209º da Constituiç­ão da República de Angola. No artigo seguinte, atribui-se à Polícia Nacional a tarefa de protecção e assegurame­nto policial em todo o território nacional.

Portanto, as denúncias acerca do sentimento de impunidade que os cidadãos experiment­am perante os flagrantes casos de poluição musical requerem uma vigorosa intervençã­o policial, tendo em vista a manutenção da ordem pública, evitando-se assim que sejam violados os direitos e liberdades fundamenta­is consagrado­s na Constituiç­ão da República.

Do ponto de vista académico estas matérias têm dignidade de ser tratadas no domínio do Direito Policial. Decorrem daí recomendaç­ões para que a Polícia Nac i o n a l c o m o s mesmo critérios e as mesmas medidas, à luz do princípio da oportunida­de da intervençã­o policial, tenha em conta as expectativ­as dos cidadãos, no âmbito das relações jurídico-policiais que daí derivam. Por outro lado, devido à sua reconhecid­a legitimida­de espera-se que a Polícia realize acções preventiva­s contra o tipo de práticas denunciada­s de poluição musical sonora e, ao mesmo, que sobre elas recaia acção repressiva exemplar. Neste caso, a Polícia Nacional deve desempenha­r o seu papel de guardião, por força do princípio democrátic­o da intervençã­o policial. Mas não poderá perder de vista os fundamento­s da ética ambiental, numa perspectiv­a garantísti­ca da nova geração de direitos humanos.

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