Regresso auspicioso à cidade dos czares
Ao sair do avião experimentei a sensação de entrar numa geleira. O forte impacto do frio provocou o recuo instintivo. O passageiro de trás empurrou-me suavemente para frente. Ao fim de catorze horas de viagem, com escala em Budapeste, chegara finalmente ao destino. Quanto mais distante do aeroporto, mais a cidade me desencantava. Um espesso manto branco cobria tudo. Não poupava ruas, passeios, telhados e carros. O rio congelado estimulou o imaginário convite para um espectáculo de patinagem artística. Nada a ver. Tudo quanto tinha lido e ouvido não se encaixava na realidade. Moscovo ficava muito para além da minha imaginação. O rigoroso inverno, autêntico aliado natural de batalhas épicas, era a expressão palpável de tudo quanto me fazia sonhar com o regresso à minha zona de conforto. Luanda ficava muito longe. Aquele dia também está distante.
O presente coloca-me em Demodedovo, um dos três aeroportos que conectam a capital da Rússia ao resto do mundo. Aqui aterram grande parte das aeronaves que escalam o país de Vladimir Putin. Contrariamente a outros pontos de entrada de diferentes países não enfrento filas
enormes para passar a emigração. Ninguém inquiriu, por exemplo, sobre meios de subsistência. É tudo célere. Olhando ao redor não reconheço nada. Estou num lugar presumivelmente desconhecido. Afinal, já se passaram trinta anos desde o dia de inverno em que a adolescente sonhadora chegara à União Soviética animada pela perspectiva de beber directamente na fonte das suas bases ideológicas.
Agora ninguém me espera. Algo impensável naquele tempo. Os agasalhos que nos davam a aparência do fofíssimo ursinho Micha eram distribuídos a seguir ao desembarque. O “comité de recepção” encarregavase de colocar os recém-chegados nos locais previamente designados. Hoje, embora o dia também esteja cinzento, o visitante pode apanhar livremente o meio de transporte que preferir ou alugar viatura. Como é praxe, os anfitriões aconselham os estrangeiros a apanharem táxis de companhias posicionadas estrategicamente à saída da sala de desembarque. Dizem ser seguros. No entanto, o quesito segurança não inclui garantia contra vigarices. O funcionário cobra-me cento e vinte euros do aeroporto até ao simpático hotel situado no coração de Moscovo. São cerca de sessenta quilómetros, justifica-se o homem.
Soube algumas horas depois que tinha sido “apanhada”. Pagar trinta euros
já seria um pouco puxado. Sentida, atirei para um lugar remoto o contacto telefónico do Serguei, o simpático taxista ucraniano que, com o seu quase inexistente inglês, foi a primeira pessoa que me ajudou a desencantar resquícios da língua dos czars do meu subconsciente.
Geralmente os russos não querem saber se os visitantes entendem ou não o idioma deles. Se alguém der indicação mínima de balbuciar algumas palavras automaticamente transformam o monólogo numa amena cavaqueira em que apenas uma das partes capta a comunicação. Caso considerem imprescindível a anuência do interlocutor, arranjam maneira de descodificar a mensagem através da linguagem gestual. Responder com sucessivos “da” (sim) pode ser a saída viável para o suposto entendimento e assim, encerrar animadas conversas como a exaustiva explicação sobre o posicionamento das toalhas na casa de banho.
A sexta-feira de finais de Abril em que regressei a Rússia, volvidos trinta anos, foi um dos últimos dias da primavera com “visual” de inverno. No meu quarto de hotel revisito momentos em que só queria estar no regaço da minha mãe. Na altura busquei consolo na “Mãe” de Máximo Gorki. Apaixonei-me por Ivan Turguenev, escritor considerado deprimente por alguns críticos. Da minha janela revejo a Biblioteca Lenine, onde estive pela primeira vez num dia 22 de Abril, dia do nascimento do líder da revolução bolchevique. Na biblioteca, com entrada gratuita, há uma stolova (cantina) onde se encontra comida saborosa e baratinha. Vale a pena passar por lá depois da enriquecedora visita. O comunismo soviético morreu, mas a história aqui está.
A menos de duzentos metros fica o Kremlin, castelo por onde circulam sec ul a r e s s e g r e dos dos poderes russos. Dizia-se nos tempos do comunismo que as suas torres somente não ultrapassavam as da KGB, figurativamente o edifício mais alto da antiga União Soviética. A partir de lá via-se tudo. Espiavase a todos. Desde os inimigos com quem disputavam protagonismo no auge da guerra fria aos aliados pela construção do socialismo.
Findo o trabalho, quando me transformo em turista volto a encontrar-me com o Serguei, o amigo taxista. Deduzi que o ucraniano de boas vibrações não fazia ideia do quanto me haviam “espremido” no aeroporto. Consta que a dita companhia segura funciona como uma espécie de intermediária. Por um preço bastante camarada, o diligente Serguei apresentou-me novos espaços. Levou-me a rever sítios que cheguei a pensar que conhecia através do cinema. O parque Gorki, o Bolshoi Teatro, sede da maior companhia de ballet do mundo, a universidade Lomonossov, de referência mundial e a homóloga menos cotada, a Patrice Lumumba, estão no mesmo lugar.
Inenarrável a sensação diante do renovado hotel Saliut, a minha aconchegante casa durante os meses que se seguiram ao desembarque narrado no início desta crónica. Revi, com nostalgia, o filme dos longos dias que influenciaram as profundas metamorfoses, o tal processo pelo qual todos passamos. Perdi o rasto de grande parte dos colegas estrangeiros. Mantenho, porém, contacto regular com alguns deles, principalmente com o Galiza Matos de Moçambique e o Valdir Alves, cabo-verdiano radicado nos Estados Unidos da América onde continua a exercer jornalismo. Vou vendo o José Carlos Semedo através dos ecrãs da Televisão de Cabo-verde. Senti um forte aperto ao lembrarme do guineense Desejado Lima, ex-sindicalista formado em Direito que visitou Angola nas vestes de presidente da Comissão Nacional de Eleições (CNE) da Guiné-bissau. Passado algum tempo soube da morte dele, ocorrida em Outubro de 2012. Estava assim adiado o reencontro para a eternidade, algures na desconhecida esfera a que chamam outra dimensão da vida.
A Moscovo que inspirou génios da estirpe de Fiodor Dostoievsky e Leon Tosltoi, cuja obra os elevou ao estatuto de património da humanidade, convive com a cosmopolita urbe onde sete em cada dez carros são topo de gama. Com sorte, o velhinho Lada, um conhecido nosso dos anos oitenta, aparece para contar estórias na cidade com o
maior número de milionários do mundo. Se o bilionário Roman Abramovich anda em circuitos fechados, já a vodka legítima, o caviar e outros requintados manjares russos estão ao alcance de bolsas medianas.
Para os mortais comuns os exuberantes shoppings existem para ser contemplados e esquecidos. O que não justifica a exclusão das matrioskas da bagagem de souvenirs. As célebres bonecas russas, que se desd o b r a m e m vers õ e s menores, são vendidas em galerias populares a preços módicos. Encontrei-as numa estação. Apreensiva em relação à máfia russa celebrizada por Hollywood, redobrei os cuidados recomendáveis para qualquer cidade. Mito urbano ou não, contam que os ladrões são “eficientes” ao ponto de sondarem, por intermédio de requintados mecanismos, até as notas verdes escondidas no bolso secreto. Felizmente circulei incólume pelo metro de Moscovo. A propósito, outra viagem fascinante. Tão belo quanto limpo, o metro deve ter pouquíssimos concorrentes mundiais. Confunde-se com deslumbrantes galerias de arte. A mesma arte que ganha múltiplas expressões na mítica rua Arbat. Nela se resume a essência da cidade. O espaço icónico mistura talentos imensuráveis, beleza, criatividade, pobreza, riqueza e malandragem. Arbat corporiza o encanto invulgar e a aura de mistério que envolvem Moscovo.