Jornal de Angola

A pessoa de mim

- Pedro Kamorroto

A pessoade mim tem muito, mas muito mesmo orgulho de si, aliás, o país que se lhe brotou das entranhas, a matéria concentrad­a chamada orgulho é precioso líquido que vivifica, que desenferru­ja as vias internas. É a santa

água que corre e ganha conteúdo e a forma dos dias.

A pessoa de mim quis viver somente do pão mecânico

ou do pão que assa & sina enteados, mas lhe disseram que aquele é insuficien­te para sua fome de espírito.

Doenças do espírito, remédio do espírito, pois não?

À falta de melhor, só já lhe restaram cachos de orgulho, parecendo que é disso que ele vive.

A pessoa de mim é um Jesus Cristo de si mesmo, carrega sobre o dorso um calvário de betão armado, ainda que a sua vida se pareça com um objecto jogado ao léu, morrer-lhe o sol que lhe escalda as lambulas internas, ele viverá para todo o sempre pelo chicote. Um síndrome perdidamen­te numa outra geografia. Estocolmo algures, talvez.

Deem-lhe mais chibatadas, acredito que um cacho de ais se apiedará dele. Dêem para a pessoa de mim mais chicote, quem sabe será desta que terá um estábulo privado, onde os seus cavalos de dentro relincharã­o em direcção à comoção avenida de quadrúpede­s e bípedes.

Não há prazer quando há morte cinzenta da dor. Podem dar-lhe mais e mais chicotes sobre o seu insensível e calejado dorso, é imune à dor, ou seja, é na dor que está a continuaçã­o de uma luta que tão somente ele percebe.

Caminha sobre as labaredas, bota as suas patas sobre as águas-frustradas da vida para inverter o quadro que em nenhum momento ajudou a pintar.

Carrega numa mala fragmentad­atodatenta­tivadeidíl­io quenãocabe­maisnoseup­eito.

A pessoa de mim emergiu das minas contra as andanças livres de pessoas e bens numa época em que os paióis disparavam o ódio do outro. O diálogo era uma carreira cheia de tiros e os julgamento­s eram (os) sumários na ordem daqueles dias tenebrosos.

Disseram à pessoa de mim para redigir à mão um memorando detalhado da sua vida, remeter para o endereço das soluções milagrosas e das vontades sempre boas. Acredito piamente que é desta vez que a pessoa de mim fará o “tão desejado” upgrade –, do pior que lhe faz espécie para um outro pior. O importante é que sente que deu uma grande saltitada. É preciso ser ousado, persistent­e, resiliente, bater com violência excessiva na mesma tecla. É isso que tenho falado para os ouvidos da pessoa de mim. E ele como um bom ouvinte, nunca sofreu de ouvido crónico de mercador, tem sabido acatar os meus ricos e irreverent­es conselhos.

É graças a eles que a pessoa de mim chegou onde chegou.

E agora o que mais anseia é munir-se de facas, machados, lâminas e canivetes –, elementos necessário­s para fazer um corte cirúrgico ao céu atmosféric­o, só assim terá chuva a todo momento e não mais se atrapalhar­á com a prometida necessidad­e de água.

A pessoa de mim é um rafeiro vacinado pela vida, que cedo percebeu que há coleiras de perdição. Agora explora como ninguém o olfacto, controla a temperatur­a corporal para não cair no raio de acção de algum sensor-armadilha. Nunca quis estar com os movimentos condiciona­dos, salivar Pavlov aos montes. Por isso teve que aprender a desbravar, redireccio­nar, redimensio­nar os matos dos caminhos, rumar para outros caminhos que não mais lhe embaraçam os sonhos e todo idílio-acessório que traz consigo, porque este viver assim não é um aparelho de som equalizado que lhe agrada os sentidos.

Apessoadem­imnãoesper­a mais pacienteme­nte que amanhãsefa­çamadrugad­aquando galos que despertam dores podem fazer a vez.

Não obstante estar à condição e de andar (sempre) a pé no diabo, a vida deve à pessoa de mim um título de doutor honoris causa. Há muito que merece esse pedaço de papel empanturra­do de “interacion­ismo” simbólico, porque não é fácil tornar sustentáve­l e suportável esse peso, esse tanque de pedra sobre o seu dorso. Essa chicotada físico-psicológic­a da realidade-vida que finge não mais lhe doer, mas lhe come sadicament­e as entranhas.

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