A pessoa de mim
A pessoade mim tem muito, mas muito mesmo orgulho de si, aliás, o país que se lhe brotou das entranhas, a matéria concentrada chamada orgulho é precioso líquido que vivifica, que desenferruja as vias internas. É a santa
água que corre e ganha conteúdo e a forma dos dias.
A pessoa de mim quis viver somente do pão mecânico
ou do pão que assa & sina enteados, mas lhe disseram que aquele é insuficiente para sua fome de espírito.
Doenças do espírito, remédio do espírito, pois não?
À falta de melhor, só já lhe restaram cachos de orgulho, parecendo que é disso que ele vive.
A pessoa de mim é um Jesus Cristo de si mesmo, carrega sobre o dorso um calvário de betão armado, ainda que a sua vida se pareça com um objecto jogado ao léu, morrer-lhe o sol que lhe escalda as lambulas internas, ele viverá para todo o sempre pelo chicote. Um síndrome perdidamente numa outra geografia. Estocolmo algures, talvez.
Deem-lhe mais chibatadas, acredito que um cacho de ais se apiedará dele. Dêem para a pessoa de mim mais chicote, quem sabe será desta que terá um estábulo privado, onde os seus cavalos de dentro relincharão em direcção à comoção avenida de quadrúpedes e bípedes.
Não há prazer quando há morte cinzenta da dor. Podem dar-lhe mais e mais chicotes sobre o seu insensível e calejado dorso, é imune à dor, ou seja, é na dor que está a continuação de uma luta que tão somente ele percebe.
Caminha sobre as labaredas, bota as suas patas sobre as águas-frustradas da vida para inverter o quadro que em nenhum momento ajudou a pintar.
Carrega numa mala fragmentadatodatentativadeidílio quenãocabemaisnoseupeito.
A pessoa de mim emergiu das minas contra as andanças livres de pessoas e bens numa época em que os paióis disparavam o ódio do outro. O diálogo era uma carreira cheia de tiros e os julgamentos eram (os) sumários na ordem daqueles dias tenebrosos.
Disseram à pessoa de mim para redigir à mão um memorando detalhado da sua vida, remeter para o endereço das soluções milagrosas e das vontades sempre boas. Acredito piamente que é desta vez que a pessoa de mim fará o “tão desejado” upgrade –, do pior que lhe faz espécie para um outro pior. O importante é que sente que deu uma grande saltitada. É preciso ser ousado, persistente, resiliente, bater com violência excessiva na mesma tecla. É isso que tenho falado para os ouvidos da pessoa de mim. E ele como um bom ouvinte, nunca sofreu de ouvido crónico de mercador, tem sabido acatar os meus ricos e irreverentes conselhos.
É graças a eles que a pessoa de mim chegou onde chegou.
E agora o que mais anseia é munir-se de facas, machados, lâminas e canivetes –, elementos necessários para fazer um corte cirúrgico ao céu atmosférico, só assim terá chuva a todo momento e não mais se atrapalhará com a prometida necessidade de água.
A pessoa de mim é um rafeiro vacinado pela vida, que cedo percebeu que há coleiras de perdição. Agora explora como ninguém o olfacto, controla a temperatura corporal para não cair no raio de acção de algum sensor-armadilha. Nunca quis estar com os movimentos condicionados, salivar Pavlov aos montes. Por isso teve que aprender a desbravar, redireccionar, redimensionar os matos dos caminhos, rumar para outros caminhos que não mais lhe embaraçam os sonhos e todo idílio-acessório que traz consigo, porque este viver assim não é um aparelho de som equalizado que lhe agrada os sentidos.
Apessoademimnãoespera mais pacientemente que amanhãsefaçamadrugadaquando galos que despertam dores podem fazer a vez.
Não obstante estar à condição e de andar (sempre) a pé no diabo, a vida deve à pessoa de mim um título de doutor honoris causa. Há muito que merece esse pedaço de papel empanturrado de “interacionismo” simbólico, porque não é fácil tornar sustentável e suportável esse peso, esse tanque de pedra sobre o seu dorso. Essa chicotada físico-psicológica da realidade-vida que finge não mais lhe doer, mas lhe come sadicamente as entranhas.