Salário e futuro
“Seria bom termos um dia a maturidade de pensar e debater seriamente, alargadamente, à volta do que é preciso fazer para que os angolanos consigam viver do seu salário, alimentar-se, pagar a renda, a escola, as necessidades da sua saúde, o desfrute da cultura e do entretenimento de qualidade..., sobre como delinear um projecto comum que todos devíamos abraçar, para prosseguirmos um caminho que leve ao ideal justo que todos merecemos”
Quantas pessoas, no nosso país, vivem do salário que auferem? »–atirou a Delmara.
Há uma pergunta prévia... »–ripostou o Cali – « Quantas pessoas têm salários no nosso país? Às vezes parece que nos esquecemos do peso da economia informal, onde existe esse imenso mar de gente, que um amigo meu chama de 'pequenos investidores', e que na agricultura, na pesca, no comércio, e mesmo na reciclagem do lixo ou no negócio da mendicidade, tudo fazem para conseguir a mais-valia que lhes permita levar o sustento para os seus ».
Tinham combinado nessa tarde irem ter com a Professora Tininha que os esperava num lugar especial, onde a conversa e as ideias se deixam ajudar pelo místico 'microambiente' que ali reina, mistura de História, de flora e de pássaros, de visão sobre a cidade e de horizonte de mar: a Fortaleza de São Miguel. Atravessada a Marginal – e tratada com ludíbrio a recente irrupção comercial de um novo-riquismo e maugosto arbitrariamente imposto à cidade–passaram por entre as enormes e simbólicas pedras plantadas no Largo do Baleizãoe,sentindo o peso das memórias de um passado que se desmorona pelos sobrados abandonados, meteram-se pela calçada, galgando o Morro de São Paulo.
–« Tens razão, Cali»– respondeu Delmara– «O tema dos salários põe a descoberto questões essenciais da realidade económica por que atravessamos e da forma como se concebe o desenvolvimento do nosso país. O que sinto ser cada vez mais decepcionante é a diferença entre o que se concebe, que se teoriza, que se torna 'programa político' e o status quo, essa realidade que está aí, mais forte que as iniciativas de mudança. Como se vivêssemos numa fatalidade ».
Já lá estava em cima a Prófe e contaram-lhe o que debatiam. Ávida de boa conversa, disparou: – « Um povo com níveis baixos de bem-estar social, saúde, habitação, etc. e com uma educação precária como o nosso, tem muito poucas possibilidades de, por si só, ser um actor transformador da sociedade. Mas a História ensina-nos que pode ser uma formidável ferramenta de transformação quando agrega a sua força e do seu seio surge uma verdadeira liderança comprometida com as suas raízes e com objectivos claros.e um dia isso vai acontecer ».
–« Mas falando de salário, têm razão que é uma questão muito mais de fundo do transparece da forma como se tem tratado. Mas assentar sobre ele toda a nossa atenção é de facto muito redutor, na situação actual de estabilização da economia. E a sua formalização é necessária para que conceitos como o de ‘salário mínimo’ tenham sentido. E isso sem desvalorizar o 'pequeno investidor', como lhes chama o amigo do Cali, que agora grassa pela chamada economia informal mas que deve ser incentivado a prosseguir, e a formalizar a sua actividade, para poder crescer recorrendo aos instrumentos que a sociedade deve colocar à sua disposição, como financiamento ».
–« Também estive a meditar sobre isso, Prófe »–interrompe a Del – « A questão não está apenas no facto do Estado querer alargar a sua base tributária, e, assim, poder ter mais recursos para que os possa aplicar em infraestruturas sociais que melhorem a vida de todos. Penso que qualquer um de nós defende um forte Estado social, eficiente,que exerça controlo sobre os elementos cruciais para o bem-estar dos trabalhadores, como o salário. Um regresso ao ideal professado no dealbar da independência, mas nunca materializado ». Tininha tinha tanto para lhes dizer...
–« Muito se fala em salários neste fim de mandato, do quanto se os pode ou não aumentar, da dignidade que é preciso dar ao salário mínimo nacional, das desigualdades de salário no Estado segundo os Ministérios e sectores profissionais, da necessidade de equiparar os salários da função pública com os do sector privado, mas o que me decepciona é que esses debates sejam feitos à luz de uma situação circunstancial, o período pré-eleitoral, o tempo das promessas vãs, e não se analise o problema com a profundidade que merece: que tipo de economia temos, qual a sua pujança e capacidade de contribuir para o bem-estar de todos, no formal e no informal, e o que fazer para que, num futuro não muito longínquo, o panorama seja melhor para todos os angolanos
Podemos não querer aceitar que seja uma fatalidade, mas olhemos à nossa volta: só mesmo os países com um sólido sistema social conseguem que os salários sejam bastantes para os que os auferem.
Seria bom termos um dia a maturidade de pensar e debater seriamente, alargadamente, à volta do que é preciso fazer para que os angolanos consigam viver do seu salário, alimentar-se, pagar a renda, a escola, as necessidades da sua saúde, o desfrute da cultura e do entretenimento de qualidade..., sobre como delinear um projecto comum que todos devíamos abraçar, para prosseguirmos um caminho que leve ao ideal justo que todos merecemos »– palavras que se esvaíram em harmonia com a atitude do sol que, sem desespero, não esperou para se pôr.