António Castanheira Neves: o uno perante o pluralismo radical
Não é prudente ignorar a história da Filosofia do Direito portuguesa, tal como afirmei no artigo anterior, se houver interesse em compreender as consequências dos fenómenos que acompanharam a transplantação do sistema jurídico português em Angola.
A Filosofia do Direito é autenticamente filosofia e não mera “filosofia dos juristas”. Esta é a lapidar afirmação do jusfilósofo português António Castanheira Neves (n.1929), na imagem, que pode ser a porta de entrada para conhecer o seu pensamento. Para este antigo professor da Universidade de Coimbra, o entendimento do que seja especificamente filosofia do direito constitui “o primeiro problema filosófico da filosofia do direito”. No entanto, essa “crise da filosofia em geral” a que se refere António Castanheira Neves emana de uma topologia, a civilização ocidental. O que significa dizer que não se trata da “filosofia em geral”. É simplesmente a filosofia ocidental que está em causa. De contrário, reproduz-se a falácia da generalização, a que se associam armadilhas de uma visão paroquial.
O ocidente e a filosofia
Para António Castanheira Neves a Filosofia do Direito continua a ser afectada pelas crises da pós-modernidade, donde emanaram os processos que arruinaram as grandes narrativas, tal como dizia Jean-françois Lyotard (1924-1998). Se a filosofia em geral não é ocidental, por que razão admite o jusfilósofo português que a crise da filosofia do direito ocidental exprime a crise global da filosofia do direito?
A resposta tem um fundamento histórico, aquele com que operam os filósofos da suspeita e que sustenta o pensamento da pós-modernidade. É daí que se deduz a negação do pressuposto segundo o qual a filosofia tem o seu berço na Grécia, isto é, no território da civilização ocidental. Cai assim por terra a tese de historiadores da Filosofia do Direito como Stamatios Tzitzis, na sua “Introdução à Filosofia do Direito”, 2011. Enquanto o filósofo francês, RogerPol Droit (n.1949) definia o conceito de Ocidente, em 2008, outros europeus, como o historiador da filosofia francês Émile Bréhier (18761952), e o português José Nunes Carreira, historiador de civilizações pré-clássicas (n.1934), questionavam, no
século XX, a precedência histórica da filosofia ocidental. Contudo, já Diógenes Laércio (200-250) com o seu “Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres” tinha fornecido subsídios relevantes, ao fornecer elementos pertinentes sobre a prática da filosofia que começou entre os bárbaros, isto é, os povos que não falavam a língua grega. Refere - se , por exemplo, à filosofia, aos deuses, Osíris e ísis, e à justiça dos egípcios.
Na verdade, os fundamentos históricos da crise da Filosofia do Direito a que se reporta o jusfilósofo português, António Castanheira Neves, circunscrevem-se à civilização ocidental. No diagnóstico que elabora, aborda a crise em suas vagas sucessivas e conclui que se exige uma atitude reflexiva de reabilitação. Por isso, o jusfilósofo defende que a Filosofia do Direito deve concorrer para “esse pensar-se o homem na sua humanidade”.
Filosofia do Direito Português
Uma das mais competentes narrativas históricas sobre a Filosofia do Direito Portuguesa tem vindo a ser produzida por outro jusfilósofo, António Braz Teixeira (n.1936), um dos seus mais importantes tribunos. A leitura de alguns dos seus livros, permite identificar referências da história da Filosofia do Direito Portuguesa. Ele considera que Vicente Neto Ferrer Paiva (1798-1886) foi um dos mais distintos professores de Direito Natural da Universidade de Coimbra, onde começou a leccionar em 1830, tendo publicado os “Elementos de Direito Natural ou de Filosofia do Direito”. A sua dedicação ao ensino impulsionou o surgimento de novos professores. Entretanto, não parece desprezível referir o facto de António Luís Seabra (17981895), um contemporâneo de Vicente Ferrer Paiva, ter sido o autor do Código Civil português de 1867, a obra que assinala a recepção das ideias do movimento de codificação do direito privado em Portugal.
A restauração do ensino da Filosofia do Direito em Portugal e nos territórios coloniais e países sob sua influência ocorreu em 1936, quando Luís Cabral Moncada (1888-1974), o jusfilósofo que também era professor na Universidade de Coimbra teve o mérito de dar o impulso decisivo para a reabilitação desse domínio do saber, cerca de um século depois de Vicente Neto Ferrer Paiva. Com efeito, foi a partir dessa data que Cabral Moncada assumiu a regência da disciplina de Filosofia do Direito.
Contra neopositivismos
Luís Cabral Moncada formou-se em Direito pela Universidade de Coimbra em 1911, tendo chegado ao posto de professor, em 1924. Desempenhou o cargo de Vice-reitor da Universidade de Coimbra e de director da Faculdade de Direito. É autor de dois volumes dedicados à Filosofia do Direito e do Estado, obra que testemunha a actividade docente desenvolvida nesses anos. No pref ácio ao l i vro, António Castanheira Neves traça o perfil intelectual do seu autor. Dá destaque a essa obra que é expressão de um intenso trabalho, podendo ser comparado ao do jusfilósofo francês Michel Villey (194-1988). No dizer de Castanheira Neves, ambos foram pioneiros da Filosofia do Direito, em Portugal e em França.
As críticas que Cabral Moncada formula contra o positivismo e os neopositivismos do século XX constituem sinais que permitem identificar a posição que ocupa no debate entre defensores do Direito Natural, de um lado, e aqueles que invocam a pureza da normatividade da lei, expurgando-a da sua dimensão valorativa, por outro lado. Essas críticas dirigidas especialmente às correntes dominantes do pensamento filosófico encontram-se vertidas nos ensaios reunidos em “Estudos de Filosofia do Direito e do Estado” livro publicado pela Imprensa Nacional-casa da Moeda de Lisboa.
Influências filosófico-jurídicas
O Brasil é o país onde a influência do pensamento filosófico-jurídico português revela o seu máximo potencial. Nessa matéria, nada do que aconteceu no Brasil tem semelhança em Angola. O início do ensino da Filosofia do Direito no Brasil, colónia de Portugal até 1822, verificou-se no início do século XIX. Admitindo a existência de convergências e peculiaridades, António Braz Teixeira, na sua historiografia filosófica, refere que o ensino da Filosofia tem os seus centros de difusão situados em São Paulo (1807 e 1808), e Rio de Janeiro (1813).
Para António Braz Teixeira, são as “Prelecções Filosóficas”, a obra de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), que permite assinalar o desenvolvimento da Filosofia do Direito no Brasil. Seguemse o padre franciscano de Mont’alverne (1754-1858) cuja obra “Compêndio de Filosofia” viria a ser publicada a título póstumo e o padre Diogo António Feijó ( 1784- 1843) com os seus “Cadernos de Filosofia”.
António Castanheira Neves
Considerado como discípulo de um jusfilósofo e professor catedrático da Universidade de Coimbra, até 1999, António Castanheira Neves distingue-se na história do pensamento português pela robustez da sua produção filosófica. Numa reflexão filosófica desenvolvida em prol da “recuperação da Filosofia do Direito”, escrita para prestar homenagem a António Braz Teixeira, Castanheira Neves manifesta claramente a sua posição em defesa de perspectivas pluralistas. Sublinha a necessidade de ter em conta “a referência às coordenadas sociológicas, axiológicas, crítico-culturais, f uncionais e sobretudo antropológicas”. Por essa razão, não hesita em caracterizar a situação, apontando a crise dos pressupostos que se analisa como “crise do uno e da identidade perante o pluralismo radical, a excluir a unicidade e a unidade dum último princípio (…)”. No contexto do novo milénio, António Castanheira Neves renova críticas que devem ser dirigidas aos neopositivismos. Inscreve-se na linha de defesa do pluralismo e aproxima-se às correntes de pensamento filosófico que se fundam no diálogo intercivilizacional. Desta forma abandona a visão paroquial que corroía os seus argumentos, ao ter admitido a possibilidade de a crise da Filosofia do Direito ocidental exprimir a crise global deste domínio da filosofia. Portanto, recomenda-se o contacto com o conjunto da obra deste autor, especialmente em virtude de revelar originalidade e concentração temática, no campo da Filosofia do Direito, em Portugal.