“Diário de Amores e Mentiras”
“Olhei para o prédio e, felizmente, este tinha número. Pintado a óleo preto, estava o número 31. Este é o prédio. As indicações e o número confirmavam-no. Era um prédio de cinco andares, construído mesmo à Cidadela Desportiva. A Dorita tinha-me dito que, por conta da visita do Papa, há exactamente um ano, todos os prédios de Luanda tinham sido pintados. Não era o caso. Este conservava ainda restos da pintura original. Do verde vivo da fotografia restava apenas uma imagem deslavada e tomada pelo sol. Na parte lateral direita lá estava o desenho de uma macieira, que lhe dava o nome: Prédio da Macieira. As persianas de estores também tinham praticamente desaparecido. Dei-me ao trabalho de contá-las: Não havia um único andar em que os quatro apartamentos conservassem a versão original, substituídos, na maior parte deles, por janelas em caixilharia de alumínio e vidros fumados. Os antigos estores também tinham desaparecido. Esteticamente, a fachada central parecia-se com uma pintura carnavalesca, em que os estores originais mal cuidados e sujos se misturavam com essas janelas brancas de caixilharia de alumínio e ainda com duas “prendas” em cimento. No cimo, segundo a planta e as fotografias em minha posse, havia um vistoso terraço. Agora, não há nada disso. Visto de baixo para cima, de um lado o terraço foi transformado num conjunto de anexos, e do outro, numa espécie de sala multiusos usada para reuniões dos moradores e pequenas festas, ou ainda, durante a semana, para os cultos bidiários de uma seita ilegal denominada “Fecunda Oração”. Como nem todos os condóminos se predispunham a pagar a sua parte, e atendendo a que o vizinho do 2º andar F era um dos pastores, a comissão de moradores decidiu rentabilizar o terraço. Deste modo, seria possível pagar os salários dos vigilantes, garantir a limpeza de escadas e comprar lâmpadas. Apesar do barulho das danças e dos cânticos, tanto de manhã como à noite, havia entre os moradores um pacto de não reclamação. Era o preço por não pretenderem pagar a sua quota do condomínio. Todos os dias a partir das 6 horas ecoavam incómodos sons de batuque acompanhados de uma dança cadenciada com o compasso do bater dos pés no chão. Às 19 horas repetia-se a dose.
Depois destes dias de vigia do exterior, resolvi entrar. O vigilante não estava à porta e nada parecia indicar que tivesse estado nos últimos anos. O elevador não funcionava e, aparentemente, era uma espécie de contentor alternativo de lixo. As escadas estavam às escuras e, aqui e ali, havia poças de água e pedaços de lixo. Nada que me surpreendesse. Dorita tinha descrito Luanda como uma cidade de prédios sem elevadores e lixo por todos os cantos. Percorri os cinco andares que deveriam ser contados como dez. Os entrepisos, tal como as casas de lixo e as casas de manutenção dos elevadores, foram transformados em improvisados “apartamentos”. A sua construção era ridiculamente desajeitada, a tal ponto que pareciam propositadamente feitas para desafiar as teorias de estética nas obras de construção civil. Apenas o entrepiso acima do primeiro andar estava rebocado e pintado.
Ao olhar para o prédio, fraquejavam-me as forças e a coragem perante tantos e tantos problemas por resolver. Será que valeria a pena lutar por este prédio? Com dinheiro? Dinheiro, na verdade não seria problema. O rendimento anual da minha família era de mais de cem mil euros em salários e prémios de produção e poupanças de quase um milhão de euros. Tendo em conta que 50% disso seria partilhado pela esposa e pelos três filhos, o normal seria que uns
bons milhares de euros me coubessem, sem falar de outros bens. E digo seria porque Rosalinda, a mulher de meu pai queria a todo o custo afastarme da lista de herdeiros das fábricas. Continuo a considerá-la como mãe, como sempre fiz, apesar dos últimos acontecimentos. Estávamos a resolver um diferendo familiar em tribunal, o que obrigava a que todos os bens em disputa estivessem congelados até que o processo transitasse em julgado. (...)”