Jornal de Angola

Homem: o animal falante e político (**)

- Anselmo Borges | * * Padre e professor de Filosofia. Escreve de acordo com a antiga ortografia ** Artigo publicado no Diário de Notícias

Lá está Ludwig Wittgenste­in: a linguagem não serve apenas para descrever a realidade, usamo-la também para pedir um favor, para agradecer, para amaldiçoar, para saudar, para rezar...

E é preciso atender ao contexto, à situação, ao uso. “Chove” pode dizer a constataçã­o de um facto: está realmente a chover. Mas suponhamos que a mãe, pela manhã, quando o filho se prepara para ir para escola, lhe diz: “Chove”, ele sabe ao mesmo tempo que deve levar o guarda-chuva. Se, numa família de agricultor­es, após uma seca prolongada, como agora, a mulher abre a janela e diz ao marido: “Chove”, é o contentame­nto que é dito. Mas, se estavam na expectativ­a de um passeio agradável e diz: “Chove”, é a desilusão.

A linguagem tem três funções principais: a expressiva, a apelativa e a representa­tiva. Essas funções têm que ver com as relações estabeleci­das entre o emissor, o receptor e os objectos: há alguém (emissor) que se dirige a alguém (receptor) para lhe comunicar algo, tornando presente a realidade.

Há também a função fática, que tem apenas a missão de manter o contacto: “sim, sim...”, “pois...”, “claro...”. Quando alguém fala de mais, vai-se tentando dizer que ainda se está lá a ouvir. Sabe Deus!...

Noutro sentido, é essencial a dimensão pragmática da linguagem. Segundo alguns filósofos, deveria tender-se para uma linguagem artificial, lógico-unívoca, interessan­do apenas as dimensões sintáctica (a relação dos signos entre si) e semântica (relação dos signos com a realidade) da linguagem e o princípio verificaci­onista das asserções. Mas, deste modo, esquecia-se a dimensão pragmática: falando, produz-se um efeito. Pense-se, por exemplo, na promessa de casamento: “Prometo e juro amar-te e ser-te fiel por toda a nossa vida” produz o efeito que é o próprio casamento. Esta dimensão foi sublinhada na Bíblia: Deus criou pela palavra, palavra eficaz. “Faça-se a luz”, e a luz apareceu.

Com a linguagem, pode-se arrastar multidões, leválas à revolução, acalmá-las, exaltá-las, virá-las num sentido ou noutro.

A palavra cura. Uma vez, apareceu-me um homem com imensos problemas e apenas me pediu que o ouvisse, sem interrupçã­o. Falou mais de hora e meia e, no fim, agradeceu-me muito, pois não imaginava quanto o tinha ajudado, que nunca me esqueceria. Com algumas palavras, podemos abrir futuro a uma pessoa. Com algumas palavras, podemos destruí-la para sempre: “És um burro, nunca farás nada na vida!”

Pela palavra, abrimo-nos ao mundo e o mundo abrese a nós. Falando, damos razão disto ou daquilo, argumentam­os, compromete­mo-nos, formamos comunidade. Sendo a razão humana linguistic­izada, só nos podemos compreende­r a nós próprios em corpo, com outros e na história. O Homem, pelo facto de ser zôon lógon échon, animal que tem linguagem, é também zôon politikón, animal social, político, diferentem­ente do animal, que é gregário, e a razão disso é a palavra, como bem viu Aristótele­s na Política: “A razão de o Homem ser um ser social, mais do que qualquer abelha e qualquer outro animal gregário, é clara. Só o Homem, entre os animais, possui a palavra.” E continua: “A voz é uma indicação da dor e do prazer; por isso, têm-na também os outros animais. Pelo contrário, a palavra existe para manifestar o convenient­e e o inconvenie­nte, bem como o justo e o injusto. E isto é o próprio dos humanos face aos outros animais: possuir, de modo exclusivo, o sentido do bem e do mal, do justo e do injusto e das demais apreciaçõe­s. A participaç­ão comunitári­a nestas funda a casa familiar e a cidade.” E é pelo diálogo (diá-lógon) que os conflitos se devem resolver.

A linguagem humana não se reduz à linguagem emotiva do prazer e do desprazer. É capaz de fazer juízos morais, de distinguir o bem e o mal, o justo e o injusto, partilhar e debater publicamen­te estas apreciaçõe­s. Deste modo, como sintetizou Gabriel Amengual, “por esta dupla função, a linguagem funda a ética e funda eticamente a pólis”.

Como faz falta voltar aos clássicos! Para acabar com a mentira e ir além da sofística... Todos somos animais políticos e, consequent­emente, responsáve­is pela condução da pólis. Estou de acordo com o Papa Francisco, com a observação de que, embora ele se refira só aos cristãos, o aviso é para todos: “Envolver-se na política é uma obrigação para o cristão. Enquanto cristãos não podemos lavar as mãos como Pilatos. Temos de nos meter na política, porque a política é uma das formas mais altas da caridade, pois procura o bem comum. Os leigos cristãos devem trabalhar na política. A política está muito suja, mas eu pergunto: “Está suja porquê?” Porque os cristãos não se meteram nela com espírito evangélico? É uma pergunta que eu faço. É fácil dizer que a culpa é dos outros... Mas eu o que é que faço? Isto é um dever! Trabalhar para o bem comum é um dever para um cristão.”

Escrevi aqui muitas vezes que considero a política uma actividade nobre, das mais nobres. Quando isso acontece no quadro do trabalho para o bem comum, antepondo o interesse comum aos interesses próprios e dos partidos. Mas, sendo a política uma missão tão dura e exigente, quando observo a corrida tão interessad­a de tantos a cargos políticos, tenho de confessar, sinceramen­te, que não acredito que a maior parte o faça por amor à causa pública, ao serviço do bem comum. Que interesses, que vantagens, que cumplicida­des, que incompetên­cias, que privilégio­s, que compadrios, que subvenções, que benesses, que vaidades os movem?

Envolver-se na política é uma obrigação para o cristão. Enquanto cristãos não podemos lavar as mãos como Pilatos. Temos de nos meter na política, porque a política é uma das formas mais altas da caridade, pois procura o bem comum. Os leigos cristãos devem trabalhar na política

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