Jornal de Angola

Vosso futuro, nosso inferno (**)

- Viriato Soromenho Marques (*) * Professor universitá­rio ** Artigo publicado no Diário de Notícias

Muitas opiniões ventiladas na nossa esfera pública, a propósito da luta estudantil contra a devastação ambiental e climática, surpreende­ramme. Não apenas pela gritante ausência de escolarida­de sobre os temas em debate, mas pelo atreviment­o de transforma­r a pobreza reflexiva num acto de iliteracia voluntária. Os jovens activistas de hoje bem podem identifica­r-se com o Paul Nizan, de Aden Arabie (1931): “Tinha 20 anos. Não deixarei ninguém dizer que é a mais bela idade da vida.”

Para perceber a gravidade do que está em causa é útil ler Douglas Rushkoff (DR), no seu mais recente livro: A Sobrevivên­cia dos mais Ricos. Fantasias de Fuga dos Bilionário­s da Tecnologia (W.W. Norton, 2022). Tudo começou em 2017, quando DR - um professor de teoria dos media e de economia digital, e um dos 10 mais influentes intelectua­is da actualidad­e segundo o MIT - foi convidado, com um tentador honorário equivalent­e a meio ano de salário, a proferir uma conferênci­a sobre o futuro da tecnologia numa luxuosa e isolada estância. Para surpresa de DR, o público era constituíd­o por apenas 5 grandes investidor­es de capital de risco, que cercaram o orador com temas fora da agenda do convite. As perguntas prendiam-se com a sua sobrevivên­cia pessoal depois do “evento”, o nome dado ao colapso da civilizaçã­o por causas ambientais, nucleares, tecnológic­as, pandémicas, ou pela combinação de todas elas: Qual o melhor sítio para construir um bunker, Alasca ou Nova Zelândia? Como garantir a fidelidade dos guarda-costas, depois do evento? Como impedir as multidões enlouqueci­das pelo desespero de assaltarem esses redutos pós-apocalípti­cos?

Foi esta inquietant­e reunião que levou DR a estudar o universo mental da elite tecnológic­a global. O resultado aí está nos 12 capítulos e 224 páginas deste ensaio. Trata-se de uma viagem àquilo que o autor designa por Mindset, uma sinistra gnose partilhada pela elite que governa as dinâmicas da inovação tecnológic­a: os grandes empresário­s do mundo digital e os líderes da arquitectu­ra financeira global. Os donos não apenas do dinheiro, mas os engenheiro­s das mentes, dos mitos e das esperanças, criadas e difundidas pelos intelectua­is orgânicos do optimismo tecnológic­o como ópio para as massas. Os políticos estão ausentes, pois esta narrativa não inclui o pessoal menor. Musk, Bezos, Zuckerberg, Peter Thiel, Ray Kurzweil entre muitos outros ...

A tábua de valores destes superricos consiste na idolatria do ego, na crença de que a vida é um jogo de vídeo a vencer, onde as regras de um mercado impiedoso imperam. A condição humana é reduzida a uma galáxia de dados que os algoritmos da IA ajudam a explorar e domesticar. Baniram a prudência ética, pela aposta na tecnologia como instrument­o da dominação e nulificaçã­o da natureza, capaz de reduzir à obediência voluntária o resto da humanidade, com a qual não sentem qualquer afinidade. À semelhança dos estudantes teenagers que lutam por um futuro habitável, os super-ricos acreditam que vamos rumo ao colapso, mas ao contrário da recusa dos jovens, aceitam-no como o inevitável preço da sua dominação, seguros de salvarem a pele nas centenas de abrigos, brotando como cogumelos, de onde esperam emergir ilesos num planeta esteriliza­do pela ruína e mega morte. Teríamos aqui um caso a exigir a intervençã­o dos poderes públicos, caso eles fossem efectivos. Mas, certamente, não contra os estudantes, os derradeiro­s defensores de uma habitação da Terra onde todos caibam.

Qual o melhor sítio para construir um bunker, Alasca ou Nova Zelândia? Como garantir a fidelidade dos guarda-costas, depois do evento? Como impedir as multidões enlouqueci­das pelo desespero de assaltarem esses redutos pósapocalí­pticos?

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LUÍS DAMIÃO|EDIÇÕES NOVEMBRO

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