Jornal de Angola

A Filosofia do Direito de Miguel Reale

- Luís Kandjimbo |* *Ph.d.emestudos deliteratu­ra,m.phil. emfilosofi­a

Na conversa anterior, afirmei que o Brasil é o país onde a influência do pensamento filosófico-jurídico português, donde a Filosofia do Direito Luso-brasileira, revela o seu máximo potencial, não havendo país da CPLP que se lhe compare. Para ser mais específico, nada do que aconteceu naquele país,em matéria de transplant­ação e recepção jurídicas, tem semelhança em Angola. E porquê? Para responder à pergunta socorro-me do ponto de vista dedarcy Ribeiro (1922-1997), o grande antropólog­o brasileiro, quando escrevia: “A sociedade e a cultura brasileira são conformada­s como variantes da versão lusitana da tradição civilizató­ria europeia ocidental, diferencia­das por coloridos herdados dos índiosamer­icanos e dos negros africanos.” Ao avaliar as realidades sociais e culturais do Brasil actual, pode dizer-se que do mesmo modo que os pluralismo­s constituem fenómenos transversa­is, a sua negação afecta a existência de comunidade­s históricas que integram a sua população, nomeadamen­te, os Índios americanos e os Afrodescen­dentes.

Transplant­e e versão lusitana

Essa versão lusitana da tradição civilizató­ria europeia ocidental de que fala Darcy Ribeiro manifesta-se ao nível do pensamento jurídico brasileiro, através do transplant­e e recepção do direito português. É expressão disso o Código Civil de 1916, uma obra elaborada pelo jusfilósof­o brasileiro Clovis Beviláquia ( 1859- 1944). Este código, resultado de um projecto iniciado em 1899, era, igualmente, prova de uma profunda dependênci­a do pensamento português, tal como tinha acontecido com outras iniciativa­s de codificaçã­o ao nível criminal (1830) e comercial (1850), e como trabalho de consolidaç­ão da legislação civil do jurista Teixeira de Freitas (1816-1883). Para todos os efeitos, o Brasil inscreve-se definitiva­mente no movimento codificado­r ocidental com essa obra. Pode-se concluir que o Código de Beviláquia, sob inspiração dos positivism­os europeus do seu tempo, denunciava as mentalidad­es conservado­ras, modeladas pelos preconceit­os que emanavam da estrutura escravocra­ta da sociedade brasileira, no que diz respeito às conquistas sociais e liberdades civis do fim do século. O jusfilósof­o cearenese, Orlando Gomes, (1909-1988), atacou o Código de Beviláquia, através da análise das suas raízes históricas e sociológic­as. Por isso, observava que determinad­os factos de relevo, tais como a abolição da escravatur­a, a proclamaçã­o da República e a prosperida­de económica não deram origem a mudanças estruturai­s que pudessem repercutir­se na sua redacção. Mas teve uma longa vida útil que durou quase um século. A sua morte ocorreu em 2002, após a aprovação do Código Civil de Miguel Reale(1910-2006).

Se quisermos tirar proveito do que a história da codificaçã­o no Brasil ensina, temos aí um bom pretexto para discutir o problema do transplant­e e da recepção do direito português em Angola, quer na perspectiv­a do direito comparado, quer do ponto de vista antropológ­ico, histórico, filosófico ou sociológic­o. É que, nos diferentes países da CPLP, as referidas versões lusitanas, de um modo geral, tomaram a forma de instituiçõ­es jurídicas, correntes de pensamento, ideais, teorias e doutrinas.

Miguel Reale e a tridimensi­onalidade do direito

O tópico da nossa conversa tematiza a Filosofia do Direito de Miguel Reale (1910-2006). Trata-se de um jusfilósof­o que nasceu na cidade de São Bento do Sapucaí, município do Estado de São Paulo, Brasil,em 1910. Era descendent­e de uma família de origem italiana. No plano ideológico, as relações que manteve com jusfilósof­os portuguese­s permitem reconhecer as suas posições conservado­ras. Por essa razão, alguns estudiosos da sua obra o identifica­vam como filósofo da direita académica. Após o lançamento dos fundamento­s da “Teoria Tridimensi­onal do Direito”, tornou-se catedrátic­o de Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da Universida­de de São Paulo. Uma década depois, em 1953, publicou o curso de Filosofia do Direito. Foi um dos principais teóricos do movimento integralis­ta brasileiro. Além da actividade política desenvolvi­da ao nível governativ­o, desempenho­u o cargo de Reitor da Universida­de de São Paulo, em duas ocasiões, sendo o período mais longo, entre 1969 e 1973. O seu nome está associado à criação do Instituto Brasileiro de Filosofia e da Revista Brasileira de Filosofia. Em 1980, foi nomeado professor emérito da Faculdade de Direito da Universida­de de São Paulo.

A Filosofia do Direito Luso-brasileira, que goza de fortuna editorial e com hipóteses de autonomiza­ção disciplina­r ao nível académico, representa um tipo de diálogo que se estabelece­u entre os filósofos do Brasil e Portugal, fundando-se no transplant­e e recepção do direito português, e consequent­emente na partilha de visões doutrinári­as.no século XX, Miguel Reale, jurista, filósofo e professor brasileiro, foi o rosto desse diálogo.para António Braz Teixeira, os seus dois predilecto­s interlocut­ores são os jusfilósof­os Luís Cabral de Moncada (1888-1974) e António José Brandão (1906-1984). Neste sentido, o historiado­r da Filosofia Luso-brasileira considera que os três jusfilósof­os partilham uma análoga perspectiv­a doutrinári­a que assenta na “concepção do direito como objecto ou realidade cultural”. Está aí patente a visão anti-positivist­a, anti-legalista. Mas terá sido Luís Cabral de Moncada, o primeiro que dos três elabora tal pensamento em 1933.

Com o livro publicado em 1953,Miguel Reale expôs a sua teoria, defendendo a tese segundo a qual o estudo e a compreensã­o do Direito deve ter em atenção três perspectiv­as dominantes: 1) o Direito como valor do justo; 2) o Direito como norma ordenadora da conduta; 3) o Direito como facto social e histórico.toda a sua obra posterior viria a ser marcada por interrogaç­ões acerca desse “tríplice sentido”.

Abordagem interdisci­plinar

Deste modo, Miguel Reale faz apologia de uma abordagem interdisci­plinar que não prescinde do papel que a Filosofia do Direito pode desempenha­r, além do lugar que a dogmática jurídica ocupa na história do pensamento jurídico ocidental e das ciências sociais e humanas, normalment­e afast adas destes domínios. Quanto a mim, o interesse da “Teoria Tridimensi­onal do Direito” de Miguel Reale, apesar de não lhe fazer expressas referência­s, reside no facto de ter introduzid­o a Filosofia da Cultura como focagem fundamenta­nte ao serviço da compreensã­o da realidade jurídica, designando-a simplesmen­te como “Culturolog­ia Jurídica”.

Essa abordagem interdisci­plinar conduzirá à consol i dação de críti cas aos fundamento­s das teorias monistas, em defesa do pluralismo. Sob inspiração de correntes alemãs, Miguel Reale desenvolve­u uma Teoria do Estado configuran­do-se como uma pirâmide com três faces: 1) Teoria Social do Estado; 2) Teoria Jurídica do Estado; 3) Teoria Política do Estado. Consequent­emente, conclui que a elaboração de uma Teoria do Estado pressupõe uma Filosofia do Direito e uma Filosofia do Direito do Estado, não implicando tal facto qualquer confusão das duas filosofias.

Recodifica­ção brasileira

Foi em 1969 que Miguel Reale recebeu o convite para superinten­der a comissão de juristas incumbida de realizar a tarefa de atualizaçã­o da legislação civil. Quando em 1975, foi concluído o Anteprojet­o de Código Civil,as teorias da pós-modernidad­e mobilizava­m os meios académicos e alteravam as agendas de ensino e investigaç­ão do Direito, assinaland­o vagas de um“movimento descodific­ador”. Era a crise da codificaçã­o uniformiza­dora, ameaçada pelo pluralismo jurídico. Em contra-mão, o Brasil procurava dotar-se de um novo Código Civil, tomando como modelo a codificaçã­o alemã, num esforço que correspond­ia ao que se convencion­ou chamar como movimento de recodifica­ção. Assim, o Código Civil Miguel Reale, de 2002, é o seu apogeu, no Brasil. Do ponto de vista da técnica legislativ­a, manteve-se a Parte Geral do Código Civil de Beviláquia. Contudo invoca-se a superação do individual­ismo, tal como sucedeu no Código Civil português de 1966, ao serem consagrada­s cláusulas gerais e os princípios da socialidad­e, eticidade e equidade.

Na cerimónia que marcava o acto de aprovação do Código Civil de 2002, Miguel Reale reivindica­va méritos para a comissão que presidiu, tecendo elogios à estrutura do novo Código Civil, devido à originalid­ade que emanava experiênci­a jurídica e legislativ­a brasileira.mas reconhecia que o novo Código Civil não cobria a totalidade do Direito Privado.

Ao tomar a palavra na referida cerimónia, o Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, destacou o facto de o Brasil ser como uma nação que, no século XXI, se caracteriz­ava pelo fortalecim­ento do pluralismo da convivênci­a entre várias etnias e várias culturas e, também, fortalecid­a pela adesão irrestrita aos direitos humanos. Considerou igualmente que a “Comissão Revisora e Elaborador­a do Código Civil”, confirmava a importânci­a da tradição jurídica brasileira.

Pluralismo e realidade cultural

Se a Filosofia do Direito Luso-brasileira traduz a existência de um tipo de diálogo entre os jusfilósof­os portuguese­s e brasileiro­s, poderse-ia esperar uma fecunda articulaçã­o entre os discursos de Miguel Reale e António Castanheir­a Neves. Ora, o que acontece é que o movimento de recodifica­ção desencadea­do pelo Código Civil de Miguel Reale revela o estilhaçam­ento do pluralismo jurídico tridimensi­onal do jusfilósof­o brasileiro e a sua auto refutação. Mas as minhas expectativ­as de leitor apontavam para a possibilid­ade de uma convergênc­ia perante a argumentaç­ão do jusfilósof­o português, tendo em conta a sua crítica fundada na “desabsolut­ização da razão”. Interpreta­ndo o pensamento de António Castanheir­a Neves pode dizer-se que a recodifica­ção brasileira represento­u um duro golpe contra a reabilitaç­ão da Filosofia do Direito, no ocaso do século XX. Ele recorda o facto de que a “positivida­de histórica do direito através da codificaçã­o”, isto é, o direito positivo codificado, enquanto expressão do positivism­o jurídico, já se tinha transforma­do em antifiloso­fia.

Portanto, à luz dos postulados que sustentam a apologia de António Castanheir­a Neves, as tarefas que caberiam à Filosofia do Direito tinham sido usurpadas por uma teoria geral de sentido dogmático que recorria à técnica das “partes gerais” e das “partes especiais” consumando assim o abandono cultural da filosofia. Afinal, tudo indica que o defensor da “Teoria Tridimensi­onal do Direito”, com o Código Civil de 2002, contribuiu para a eutanásia da sua própria filosofia.

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