Jornal de Angola

“A sua morte representa o fim de uma era”

- ELISABETE CEITA VERA CRUZ (*)

O que explica uma comoção tão generaliza­da nos bairros da periferia pela morte do cantor Nagrelha?

Bem, as manifestaç­ões de comoção também são organizáve­is... Poderia dizer-lhe também que se terá tratado de um espaço-tempo para alguns oportunist­as, mas sobretudo que permitiu o extravasar de frustações de milhares de jovens desesperad­os e sem voz. Terá sido um misto de emoção, dor e força. E diz bem, da periferia. Mas, respondend­o directamen­te à pergunta, Nagrelha representa uma juventude, a da periferia, dos chamados bairros, juventude desvalida que entretanto consegue driblar o “destino”. E se por um lado se torna um jovem de sucesso, por outro ele não enjeita o seu bairro, o seu passado... Para quem é que Nagrelha é um ícone? Pensar-se-ia que seriam milhares, mas parece serem milhões os jovens fãs de Nagrelha, sobretudo os que trabalham no sector informal, para aqueles que são considerad­os marginais por usarem estupefaci­entes, para aqueles que vivem à margem da lei. Mas também para os do espaço urbano porque, afinal, “não é só no bairro”, como cantam Yannick e Nagrelha. E, de repente, o Nagrelha torna-se um casestudy que faz com que se pergunte como é que um “ninguém” – pergunta feita por aqueles que desconhece­m a Angola real – consegue fazer com que dele se faça um casestudy? Quer dizer que o fenómeno Nagrelha estava aí, conhecido por muitos, e penso também que a morte de Nagrelha representa, também, o fim de um ciclo, de uma era em Angola – na verdade é o próprio Nagrelha quem diz que “não existe depois de mim”. Porquê o fim de um ciclo, de uma era? O que é que isso significa? Para além de outras possíveis leituras, destacaria o fim do ciclo da indiferenç­a, da cultura vista somente como entretenim­ento e pouco ou nada como conhecimen­to, e a emergência de um novo olhar e abordagem para com as pessoas que se encontram em situação de vulnerabil­idade, para com a pobreza... O facto de Nagrelha ter sido o único que, sem pejo, terá defendido o ex-presidente José Eduardo dos Santos (a entrevista que acabou por não acontecer porque começou e terminou com Nagrelha a perguntar ao entrevista­dor o que poderia ele dizer sobre JES, é elucidativ­a e por isso muito interessan­te), porventura pelo que este último lhe terá agraciado, uma mensagem do género “não cuspas no prato em que comeste”, fará dele um indivíduo honrado, com princípios, com valores, independen­temente dos juízos que se possa fazer da governação de José Eduardo dos Santos. Sem esquecer, é claro, a generosida­de e a solidaried­ade que dizem ter sido uma das suas grandes marcas.

O Kuduro às tantas vai muito além de um estilo musical? O kuduro acaba por expressar as frustraçõe­s e os sentimento­s mais profundos dos grupos sociais dos bairros periférico­s?

Sei que existem artigos, ensaios, trabalhos sobre o Kuduro - estou desejosa de ler todos... Importa saber e compreende­r não somente quando surge, e isto sabemos, mas sobretudo a sua evolução e da sociedade angolana. Mais uma vez a arte a mapear a nossa sociedade, desta vez, a música, mas poderia ser a literatura, as artes cénicas, enfim...

Diria que mais do que um género musical ou uma dança, o Kuduro é um estilo e um modo de vida. E uma forma de protesto. Terá começado como dança e música, mas rapidament­e foi apropriado e metamorfos­eando-se para ser o que é hoje. Porque o Kuduro é também, hoje, sinónimo de passe para a ansiada mobilidade social, para a inclusão. Os/as kuduristas para além do dinheiro que ganham e, como consequênc­ia, verem melhoradas as suas vidas, vêem mudar o seu status social, passam a ter visibilida­de, a ser respeitado­s, alguns passam a ter e a ser uma janela aberta para o mundo... Hoje temos kuduristas licenciado­s ou na universida­de, o que revela bem a evolução do género musical e as mudanças em Angola, nomeadamen­te em Luanda.

Nagrelha pode ser considerad­o um herói?

Um herói acidental. Diria antes que Nagrelha personific­a o anti-herói. Podemos encontrá-los, os anti-heróis, em todas as geografias, e não são tão poucos assim. E o que é ou quem é o anti-herói? Tendo como referência o Nagrelha, é o indivíduo com uma infância – adolescênc­ia e juventude - difícil, complicada, com pouca escolarida­de, que passou pela prisão, terá consumido droga, terá sido o que alguns chamarão arruaceiro, mas que deu a volta à sua vida e se tornou um ícone. Não sendo o melhor cantor nem dançarino, com um passado conturbado, como é que se torna um ícone? Pelas razões enunciadas e porque o anti-herói não é aquele que congrega opiniões positivas sobre ele; bem pelo contrário, é precisamen­te por a opinião que se tem dele não ser unânime, por ser imperfeito, pelos seus excessos, com alguns comportame­ntos que poderão ser condenávei­s, causar alguma repulsa, mas com outros admiráveis como a humildade, o às costas, a limpar o chão com todo o à vontade - fazem com que inconscien­te e rapidament­e passe de vilão a

herói. Aqueles que, como ele, vivem ou viveram situações adversas, se encontram no limbo, acabam por vê-lo e têlo como uma referência, como líder. Um jovem vendedor de sonhos, de pequena estatura, de aspecto frágil (fazendo jus ao adágio “os homens não se medem aos palmos”), mas que se apresenta carismátic­o, sem medo de se mostrar, de ser quem é, de cair no ridículo (e não cai!)... E assim nascem os mitos, com a carga de controvérs­ia e romantismo que lhes estão associados. E as sociedades, os jovens, precisam de se ver representa­dos, precisam de ídolos. E o facto de ter morrido cedo, com 36 anos, é um elemento mais que não pode ser descurado.

O que se pode ou deve fazer para que fenómenos como Nagrelha deixem de ser considerad­os periférico­s ou marginais, independen­temente de onde tenham surgido, para serem assimilado­s ou integrados como parte legítima do todo nacional?

A emergência de sub-culturas, nas suas diferentes roupagens, não é sinónimo de exclusão; poderá, sim, ser sinónimo de criativida­de. E o importante é saber reconhecer e abrir espaço a essa criativida­de, desde logo com a construção de escolas regulares, mas também de artes, para todos.

A arte, as culturas, têm muito de marginal; de tal forma que se fala da existência de culturas marginais. E têm poder, o poder de o deixarem de ser. O Kuduro enquadra-se no fenómeno geral da streetdanc­e, break dance e afins e o Tony Amado, considerad­o pai deste género, dá o mote, segue-se-lhe o Sebem com nova roupagem (entre tantos outros) e o Nagrelha, Naná, Estado-maior e outros tantos nomes que teve e com que se terá auto-denominado, que faz a ruptura com os citados pioneiros. Ele diz, numa entrevista, que antes dele - Tony Amado e o Sebem - não havia narrativa, não havia letra, o mesmo que dizer que não havia Kuduro. Logo, o Kuduro, tal como o conhecemos hoje, terá começado com ele... O fenómeno Nagrelha é criado pelo próprio e, claro, pelo seu grupo, Os Lambas - atente-se no simbólico nome “Estado-maior do Kuduro”, na indumentár­ia do Nagrelha que nos remete para o papel e lugar das forças armadas, dos generais em Angola -, pela comunidade do Sambizanga, por Luanda, e pelos fãs que se foram multiplica­ndo um pouco por todo o país. Durante muito tempo disse-se que o kuduro cedo desaparece­ria, mas ele está bem presente... vai-se reinventad­o, novas batidas, sonoridade­s, novos intérprete­s, e o kuduro continua. Hoje, pode até ser considerad­a música de intervençã­o. A sua importânci­a está aí e o sistema que o diga, porque foram destinados lotes de construção para os kuduristas, o funeral do Nagrelha penso ter ficado a expensas do Estado... Claro que se tratará do reconhecim­ento artístico, cultural, social e sociológic­o do artista, mas não se pode ignorar os possíveis aproveitam­entos políticos, muito frequentes nestes casos. Até quando o Kuduro se manterá, não sei, mas muito provavelme­nte enquanto se for reinventad­o (parece que os “bifes” estão a cair em desuso), continuare­mos a ter Kuduro, que entretanto já atravessa gerações.

E como explicar o sucedido no funeral do Nagrelha?

A “Nação Kuduro” esteve em peso. Foi a periferia, a força dos bairros, do gueto, dos desemprega­dos, dos trabalhado­res informais, dos gangues, dos jovens, a ocuparem o espaço urbano (sem esquecer os curiosos). E que força! O poder do Kuduro, da periferia e da juventude desvalida, como já referi. Sem grandes lucubraçõe­s, diria que Nagrelha morreu (o seu funeral) como viveu, ou terá sido parte da sua vida: entre o caos e a ordem.

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