Jornal de Angola

“Uma forma de vida ou um amplo movimento popular artístico”

- * PH.D em Sociologia. Professor Auxiliar do Departamen­to de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da Universida­de Agostinho Neto

“Penso que a compreensã­o sobre o que está a ocorrer com a comoção generaliza­da pela morte do Nagrelha deve passar pela relação de vários elementos. O primeiro deles é, sem sombra de dúvidas, o sentimento de comoção pela morte prematura. Ninguém está preparado para ver partir pessoas tão jovens. Principalm­ente quando estas possuem recursos suficiente­s para acederem a cuidados de saúde adequados.

O segundo deles, e aqui começo a introduzir as minhas hipóteses, é o de Nagrelha ser aquilo que a Sociologia designa como um carismátic­o. Encontramo­s na pessoa a mística própria de alguém que apela ao sentido de identifica­ção de uma imensa multidão de jovens espalhados pelo País. Muito se deve, certamente, ao que ele sugere como ideal de realização social: um jovem nascido pobre, com poucas oportunida­des, sem possibilid­ades de frequentar a escola, com uma experiênci­a de vida marcada pela exclusão social, violência e criminalid­ade, e mesmo assim, e apesar disso, conseguir atingir os palcos da fama mundial através da música.

E há ainda outro aspecto importante a considerar (ainda como hipótese) na personagem carismátic­a do Nagrelha: mesmo depois da consagraçã­o, da fama, e de tudo o que isso poderia trazer- lhe como benefícios, nunca o vimos em viagens a Miami, Portugal, ou a Dubai, a exibir sinais de riqueza. Nagrelha continuou igual a si mesmo. Não se deixou corromper pelo dinheiro e se transfigur­ar pela fama. Continuou próximo do seus, continuou a ser do Sambizanga, o Naná. E essa ideia de pureza e de fidelidade aos seus e às suas origens é uma marca distintiva que apela à simpatia, ao apreço e à identifica­ção de muitos.

E, por fim, um último elemento: o Kuduro. A morte do Nagrelha é aquele evento que nos vem mostrar que o Kuduro não é apenas um estilo musical. De algum tempo a esta parte, o Kuduro vem sendo qualquer coisa que se pode situar entre uma forma de vida, um amplo movimento popular artístico, e um estado de espírito. A morte do Nagrelha, para além de ser o momento de expressão da comoção pelos seus fãs, é também um momento de celebração da afirmação do Kuduro como o produto final de todos aqueles elementos. O Kuduro é hoje representa­do como um veículo de promoção social por uma imensidão de jovens que vive na marginalid­ade, exclusão, no desemprego, e sem esperanças de realização pessoal através dos meios socialment­e convencion­ais. Estes jovens têm todo interesse em que o Kuduro, com todos os seus def ei t os, s e afirme e s ej a reconhecid­o como veículo alternativ­o de realização social. Portanto, o que vimos no funeral do Nagrelha pode também ter sido, por um lado, uma vigorosa declaração de intenções de afirmação do Kuduro como a pátria dos excluídos e, por outro, pode também ter sido aquilo que os americanos designaria­m por backlash, traduzindo, a “desforra”. Ou seja, e no final das contas, o Kuduro como um sentimento de “desforra” conduzido por estes jovens contra uma elite política e económica que os abandonou e os deixou entregues à sua sorte. Daí também, como movimento artístico, o Kuduro trazer sub-repticiame­nte uma proposta de transgress­ão dos códigos sociais convencion­ais. Não apenas em termos da linguagem, mas até na resignific­acão dos sentidos que se atribuem aos lugares de exclusão e de marginaliz­ação. É aqui que nos poderá também dizer algumas coisas sobre a sinalizaçã­o da existência cada vez mais notória do drama actual do País: a separação entre a ‘elite’ e o ‘povo’”.

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