“Uma forma de vida ou um amplo movimento popular artístico”
“Penso que a compreensão sobre o que está a ocorrer com a comoção generalizada pela morte do Nagrelha deve passar pela relação de vários elementos. O primeiro deles é, sem sombra de dúvidas, o sentimento de comoção pela morte prematura. Ninguém está preparado para ver partir pessoas tão jovens. Principalmente quando estas possuem recursos suficientes para acederem a cuidados de saúde adequados.
O segundo deles, e aqui começo a introduzir as minhas hipóteses, é o de Nagrelha ser aquilo que a Sociologia designa como um carismático. Encontramos na pessoa a mística própria de alguém que apela ao sentido de identificação de uma imensa multidão de jovens espalhados pelo País. Muito se deve, certamente, ao que ele sugere como ideal de realização social: um jovem nascido pobre, com poucas oportunidades, sem possibilidades de frequentar a escola, com uma experiência de vida marcada pela exclusão social, violência e criminalidade, e mesmo assim, e apesar disso, conseguir atingir os palcos da fama mundial através da música.
E há ainda outro aspecto importante a considerar (ainda como hipótese) na personagem carismática do Nagrelha: mesmo depois da consagração, da fama, e de tudo o que isso poderia trazer- lhe como benefícios, nunca o vimos em viagens a Miami, Portugal, ou a Dubai, a exibir sinais de riqueza. Nagrelha continuou igual a si mesmo. Não se deixou corromper pelo dinheiro e se transfigurar pela fama. Continuou próximo do seus, continuou a ser do Sambizanga, o Naná. E essa ideia de pureza e de fidelidade aos seus e às suas origens é uma marca distintiva que apela à simpatia, ao apreço e à identificação de muitos.
E, por fim, um último elemento: o Kuduro. A morte do Nagrelha é aquele evento que nos vem mostrar que o Kuduro não é apenas um estilo musical. De algum tempo a esta parte, o Kuduro vem sendo qualquer coisa que se pode situar entre uma forma de vida, um amplo movimento popular artístico, e um estado de espírito. A morte do Nagrelha, para além de ser o momento de expressão da comoção pelos seus fãs, é também um momento de celebração da afirmação do Kuduro como o produto final de todos aqueles elementos. O Kuduro é hoje representado como um veículo de promoção social por uma imensidão de jovens que vive na marginalidade, exclusão, no desemprego, e sem esperanças de realização pessoal através dos meios socialmente convencionais. Estes jovens têm todo interesse em que o Kuduro, com todos os seus def ei t os, s e afirme e s ej a reconhecido como veículo alternativo de realização social. Portanto, o que vimos no funeral do Nagrelha pode também ter sido, por um lado, uma vigorosa declaração de intenções de afirmação do Kuduro como a pátria dos excluídos e, por outro, pode também ter sido aquilo que os americanos designariam por backlash, traduzindo, a “desforra”. Ou seja, e no final das contas, o Kuduro como um sentimento de “desforra” conduzido por estes jovens contra uma elite política e económica que os abandonou e os deixou entregues à sua sorte. Daí também, como movimento artístico, o Kuduro trazer sub-repticiamente uma proposta de transgressão dos códigos sociais convencionais. Não apenas em termos da linguagem, mas até na resignificacão dos sentidos que se atribuem aos lugares de exclusão e de marginalização. É aqui que nos poderá também dizer algumas coisas sobre a sinalização da existência cada vez mais notória do drama actual do País: a separação entre a ‘elite’ e o ‘povo’”.