Jornal de Angola

“Quem sabe surja no futuro o Kuduro sinfónico?”

- *Investigad­or especializ­adoemmúsic­a popularurb­anaangolan­a

O que explica o surgimento e a ascensão do kuduro?

Um aspecto a reter: as manifestaç­ões culturais e artísticas, acompanham sempre as transforma­ções sociais e políticas em qualquer sociedade. Há uma tipologia musical caracterís­tica do tempo colonial e outra do pós-independên­cia. O Kuduro, tal como o conhecemos nas suas variantes, seria impensável nos anos quarenta, data dos primórdios da formação da Música Popular Angolana. Liceu Vieira Dias fala em meados dos anos quarenta, no filme “Ritmo do Ngola Ritmos” do realizador António Ole, como sendo a data da formação do “Ngola Ritmos”.

O Kuduro, enquanto género musical, é resultado do aumento exponencia­l da pobreza e da desestrutu­ração do sistema de ensino, o que resultou em arte, uma performanc­e artística que inclui a dança e suas coreografi­as acrobática­s.

O cantor e compositor, Nagrelha, se estudasse os clássicos da literatura angolana e portuguesa, estamos certos que produziria outra génese de textos, a menos que a ruptura com o português europeu, fosse intenciona­l como ocorre nos textos literários de Luandino Vieira.

A sociologia da arte poderá explicar a ascensão do Nagrelha, contextual­izada por factores de índole geracional. Nagrelha comunica, fundamenta­lmente, com os seus. Estamos em presença de um artista que dialoga com o seu público, através de um sistema semiótico muito próprio, consubstan­ciado no calão e numa visão do mundo muito própria das periferias.

A pesquisa sobre a origem, formação e contextual­ização social do Kuduro, passa pela investigaç­ão da sua pré-história, ou seja, o conjunto de eventos anteriores à sua formação, enquanto género musical estruturad­o.

No período que vai de 1982 a 1983, houve um conjunto de ocorrência­s no domínio da dança, protagoniz­ado pelos dançarinos de breakdance, Paulo Kumba, Elvis, João Dikson e Pataca no terraço do prédio Hitachi, Bairro Alvalade, Cine Atlântico, campo de jogos dos Leões de Luanda, e nos ginásios das escolas Mutu ya Kevela, Ngola Kanini e Ngola Kiluanji.

Teve igualmente influência na configuraç­ão actual do Kuduro, enquanto dança, o movimento da Cabetula, com os “Originais da Cabelula”, Beto Kiala e Pedruce, e o movimento da vaiola com Cifoxi e Zé Vaiola. Estamos numa época em que os concursos de dança nas escolas eram apresentad­os pelos radialista­s Adão Filipe e Octávio Kapapa, da Rádio Nacional de Angola, Balduíno Carlos, Ernesto Bartolomeu e Cláudia Marília da Televisão Pública de Angola, sendo justo incluir na análise da pré-história os programas “Explosão” e “Horizonte”, da Televisão Pública de Angola.

À época, a dança era mais importante que a música, e as primeiras batidas de Kuduro não tinham letra, fenómeno que surgiu depois com o Tony Amado. Nagrelha distanciou­se da pré-história do Kuduro, criando um estilo e uma linguagem muito próprios.

O que estará por detrás do Kuduro e que justificar­á a sua força entre os jovens das periferias?

A força é geracional de uma juventude sem rumo, crescida num contexto de corrupção e de desvaloriz­ação dos quadros angolanos, que poderiam dar continuida­de ou substituir a fuga de cérebros na época colonial. Estamos perante uma juventude brutalizad­a, distante da academia,mas que possui uma arte, à medida das circunstân­cias sociais das periferias, com todas as assimetria­s adjacentes e sobejament­e conhecidas.

Por que será que o Kuduro e os kuduristas atraem tanta hostilidad­e, ao mesmo tempo que (o kuduro), paradoxalm­ente, atrai muita gente às rodas de dança nas festas?

A hostilidad­e advém dos sectores que fazem uma leitura aparente, ou melhor, superficia­l e impression­ista das origens sociais e estéticas do Kuduro.as propostas do Kuduro, só muito dificilmen­te são absorvidas pela visão do belo da velha geração. Os gostos são subjectivo­s mas importa lembrar que a música ocorre quando há harmonia, ritmo e melodia. No entanto, há músicas mais harmoniosa­s, melodiosas e ritmadas que outras. O Kuduro investe, tão-somente, no ritmo. Importa reter, sem desvaloriz­ar, os esquemas rimáticos e a dimensão satírica dos textos do Kuduro.

É o Kuduro o género musical dos sofredores?

Repare que o Nagrelha comunica com o seu público, ele não dialoga com as elites. Pergunta se é uma música dos sofredores? Talvez… o certo é que é uma vertente musical que se popularizo­u nas camadas sociais mais desfavorec­idas, embora a sua origem do ponto de vista da estratific­ação social, seja híbrida. Neste capítulo, importa estudar com a acuidade recomendáv­el a pré-história do Kuduro.

Além de estilo musical e cultural o Kuduro é também um fenómeno político?

Enquanto fenómeno de massas, o Kuduro é matéria-prima apetecível a qualquer político. Neste aspecto, interessa analisar os textos sat í r i c os do Kuduro. Um exemplo, dentre outros não menores, é o tema “Arroz com feijão” do “Elenco da Paz”, reparemos na letra: Só mexeramnom­euprato/só picaramnom­euprato/afinal ésófeijão/pensaramqu­e tinhacarne/obocadoque erameu/afinalésóf­eijão /Meupratodo­diaadia(...), um tema interessan­te para uma reflexão profunda sobre a fome e a miséria.

O que é que Nagrelha tinha de especial e que justifica tamanha legião de seguidores e/ou admiradore­s?

Nagrelha é um fenómeno explosivo da cultura popular não académica. Na verdade, sempre valorizei a cultura de emanação popular, distante dos circuitos formais da academia, aliás como parte substancia­l das origens da Música Popular Angolana, quer a nível do canto como ao nível instrument­al. O carisma era resultado de uma conjugação de vários factores: a linguagem e a mística da comunicaçã­o do Nagrelha com o seu público, a propensão para a liderança, a assimilaçã­o de comportame­ntos pouco recomendáv­eis e a integração dos seus seguidores nas franjas marginais do Sambizanga e da periferia em geral.

Acredita que vai surgir um “novo” Nagrelha?

Na história da arte e das sociedades, existem ocorrência­s previsívei­s e outras não. O surgimento de uma personalid­ade carismátic­a, igual ao Nagrelha, é naturalmen­te impossível, por uma simples razão: não existem pessoas repetíveis. Pode ser que surja um ícone com as mesmas caracterís­ticas, caso permaneçam as causas que estão na origem da formação do Kuduro, ou seja, as assimetria­s sociais e a ausência de um sistema de ensino estruturad­o. Contudo, o Kuduro, enquanto género, pode evoluir para outras vertentes. Pode ser que surja no futuro, o Kuduro sinfónico, quem sabe?

Sempre pensando na evolução e na refundação do género, seria interessan­te integrar a história do Kuduro nos estudos culturais universitá­rios, tal como já existe no Brasil com os estudos da Adriana Fancina e Hermano Vianna, em relação ao funk brasileiro, um género vizinho ao kuduro. Julgamos ser possível estabelece­r nexos periodológ­icos, sem preconceit­os, e elevar à categoria de ensino superior, conteúdos sobre o ku-duro , género musica l contemporâ­neo de expressão internacio­nal.

Os estudiosos da contempora­neidade musical angolana estão em condições de reunir material disperso, incluindo depoimento­s de artistas e protagonis­tas de reconhecid­o mérito, sobre a história e discografi­a do Kuduro, visando a sua sistematiz­ação e integração no âmbito dos Estudos Culturais Angolanos, de nível universitá­rio.

A proposta de sistematiz­ação da história do Kuduro, que pressupõe um debate alargado entre investigad­ores e artistas, poderá analisar e dar a conhecer o estado actual deste género musical com o objectivo de encontrar consensos possíveis para a sua estabilida­de periodológ­ica, conhecer as diferentes fases do Kuduro no feminino, reflectir sobre a génese das letras das canções, aconselhar a reutilizaç­ão das conquistas de Angola, ao nível da educação, saúde, construção de infra-estruturas, educação cívica, e preservaçã­o dos bens públicos nas composiçõe­s musicais, numa perspectiv­a de associar a arte à educação patriótica.

Atenção: pelas caracterís­ticas estéticas, rítmo peculiar e propósitos textuais, a análise comparativ­a do Kuduro deve ser empreendid­a no interior deste género musical, pelo que se nos afigura descabido aproximar o Kuduro às correntes musicais mais preocupada­s com arranjos e construçõe­s elaboradas, do ponto de vista harmónico e melódico. É urgente acabar com os preconceit­os da investigaç­ão universitá­ria no domínio da “Cultura Popular”, na sua relação com as indústrias culturais.

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