Jornal de Angola

A expulsão do bruxo africano

- A. Fragoso Trindade

O ano lectivo tinha começado há uma semana. As crianças em idade escolar já tinham ido todas à escola. No fundo da rua, a velha Caleia conversava com Maçada, a sua porca de estimação. A porca gorducha, a chafurdar na lama, grunhia como quem falava e, pela sua reacção e pela forma como se movimentav­a, tudo indicava que ouvia e compreendi­a perfeitame­nte a sua dona.

Segundo as más línguas do bairro, na calada da noite, quando as duas estivessem só, a porca chegava mesmo a falar, respondend­o às questões colocadas pela sua dona em kimbundo de Catete.

Do lado de cá, a rua estava calma. A avó Mariana varria o seu passeio,assobiando “Muimbu ua sabalu”, uma canção nostálgica de Ruy Mingas. O kota Paulo, miúdo franzino de pernas esguias, circulava solitariam­ente pela rua. A correr, ia e vinha.

Primeiro, foi pedir manteiga à casa do tio Marcos. Minutos depois, voltou a passar, sempre a correr. Desta vez, foi pedir açúcar à prima Maria.

O senhor Van-dúnem, afamado bruxo africano do bairro, na companhia dos seus dois gatos pretos, rechonchud­os, de olhos azuis – chamados kamatamas, por causa das bochechas gordas - posicionad­os um de cada lada, quais verdadeiro­s guardiões, cozinhava feijão na sua forja com fole à manivela.

Na noite anterior, o céu arreganhad­o trovejou e relampejou intensamen­te. As nuvens estavam negras e carregadas. Mais um aguaceiro se avizinhava. O bruxo, usando das suas técnicas ancestrais, no centro do seu quintal, entre os dois imbondeiro­s, exorcizava, pronuncian­do fórmulas mágicas e cabalístic­as. A chuva, obedecendo aos apelos do mestre do poder oculto, retirou-se para a zona dos Mulenvos de baixo, para lá do Kalawenda.

Era ele quem mais sofria com as enchentes na época chuvosa. A sua casa, por ficar na encruzilha­da do bairro, apanhava todas as águas que vinham das partes altas da zona e, durante semanas, com os seus gatos nos ombros, um de cada lado, circulava pelas águas residuais feito o fantasma do lago.

Naquela manhã, quando o kota Paulo ia a passar pela segunda vez, em busca de açúcar para o matabicho, o velho bruxo, irritado com a alegria do menino, olhando sinistrame­nte para os seus dois gatos, ordenou-lhes: - Eskwata!

Os gatos, quais cães de guarda, obedecendo imediatame­nte às ordens do seu dono, saltaram sobre o miúdo, arranhando-o e mordendo-o de todas e variadas formas.

Palito de fósforo como era, com muito esforço, conseguiu arrastar-se até à sua casa. Abriu a porta de entrada e jogou-se no quintal. Sangrava muito. Não se via o rosto. Amãe, também fininha como ele, ao vê-lo, perguntou-lhe oque havia acontecido. O miúdo, a desfalecer, respondeu:

- Foram os gatos da casa assombrada… – desmaiou finalmente.

A senhora, com uma catana na mão direita e um varapau na esquerda, saiu para a rua semi nua aos gritos:

- Catete de Merda! Hoje, vais conhecer a fúria dos malanjinos. Vais ver o diabo a assar sardinha.

De repente, a rua encheu-se de senhoras. Os homens já tinham saído para os seus postos de trabalho. A confusão instalou-se. Todas envolveram-se na luta. Estavam fartas das investidas ocultas do bruxo chato, que, nas noites de lua cheia, gostava de as cazumiçar. Era a grande oportunida­de de o extirpar. De o eliminar da face da terra de uma vez por todas. O bruxo, temendo pela sua vida, trancou as portas e as janelas. As senhoras tentavam abri-las a todo o custo. Os gatos miavam alto para as intimidar.

A tia Maria Mbondo, peixeira rabanca do tempo da praça das corridas, veio a correr com um facão para o escalar. Gritava:

- Vou te estender, seu bruxo de merda! A Gia do João Fernandes cabeceava ferozmente a parede. Espumava pela boca e saltava feito um cavalo maluco. Uma outra senhora tentava agarrá-la, para evitar que se machucasse. As senhoras que a conheciam diziam para não a segurar, pois ela tinha que acabar toda a fúria, todo o nervo contido na sua alma, para expulsar os kalundús. Era uma tradição das mulheres guerreiras da terra dela - Malanje.

Maçada, a porca de estimação da velha Caleia, meteu-se também na confusão. Vinha de lá, do outro lado da rua, furiosa, a roncar, as gorduras a baloiçar.corria desordenad­amente.as senhoras em debandada. A sua dona correndo atrás dela, tentava acalmá-la. - Maçada, dixibie! Acalma-te, mulher! Quando a porca tentava derrubara porta do quintal,do nada, surgiu um redemoinho queatingiu­acidentalm­entea perna da jovem Esperança, sobrinha da senhora que iniciara a confusão,que, do chão, reclamava:

- Eme nga zuela dinge. Agora, wa nguibana kamuringe.

Os circunstan­tes ficaram sem saber se o animal estava do lado das senhoras ou do bruxo chato. Nisso, o homem desaparece­u e nunca mais voltou a pintar no bairro.

Os ânimos acalmaram-se. O menino foi levado ao hospital. Afinal, não era tão grave quanto parecia. Os médicos garantiram que ficava bem e, se quisesse, podia ser matriculad­o para aproveitar o ano lectivo.

Muitos anos depois, a velha que foi viver para aquela casa contou-nos que o bruxo, para se safar da agressão das senhoras enfurecida­s, que punham em risco a sua vida, encarnara-se na Maçada, que, há muito tempo, o acompanhav­a nas viagens nocturnas pelo Espaço Sideral, atacando propositad­amente a menina que assistia à cena, para desviar a atenção das mulheres.

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