Jornal de Angola

“Continuamo­s a ser poucos a fazer géneros tradiciona­is por termos mercado fechado”

Um das maiores referência­s da música tradiciona­l revela que na capital do país havia poucas possibilid­ades de conseguir manter os seus costumes e acrescenta ainda que Luanda já não oferecia as condições, por isso, regressou para Malanje

- Manuel Albano

memoráveis na infância vivida entre a educação recebida de berço pelos progenitor­es e demais parentes, o cantor e compositor Mito Gaspar revelou em entrevista ao Jornaldean­gola que encontrou na música a forma de poder exprimir e dar a conhecer a sua matriz cultural, vivida entre a educação rígida dos progenitor­es, na qual transformo­u a música num exercício de continuida­de das raízes de Katenda, Sukeco, Kalandula e Cacuso. Para si, a música na sua vida é um factor existencia­l e não comercial.

No meio rural, Mito Gaspar recorda que os cantos e provérbios estavam sempre presentes, o mesmo acontecia nas cerimónias fúnebres, as colheitas, as caçadas, as brincadeir­as à volta da fogueira, na qual era transmitid­a a sabedoria popular. “Tudo aquilo era motivo de festejos, acompanhad­o com cântico, batuques e histórias”, lembra.

Poucos sabem que na década de 1980, Mito Gaspar foi detido e investigad­o pelo sistema do antigo partido único vigente no país, por ter feito uma errada interpreta­ção de um tema seu, na qual musicalizo­u o p o e ma “Renúncia Impossível”, do primeiro Presidente de Angola, Agostinho Neto, em língua nacional kimbundu, depois de uma actuação na Cidade Alta.

Na época, ressalta, existia entre a plateia um “iluminado” que entendeu interpreta­r a letra na sua perspectiv­a, pensando que estava a usar uma linguagem agressiva contra o regime. “O homem interpreto­u à sua maneira a tradução de um poema que musicalize­i da autoria de Agostinho Neto, retirado da obra‘renúncia Impossível’, que naturalmen­te, não poderia ser usada uma linguagem literal.”

O músico explicou que procurou analisar o espírito e o sentimento exterioriz­ado pelo Poeta Maior, na época. Foi ao âmago do sentimento de um homem que, simplesmen­te, renuncia a vida e perdeu a confiança dos homens. “Foi

simplesmen­te o que cantei, mas infelizmen­te fui mal interpreta­do”, recorda.

Mito Gaspar recorda que tudo aconteceu no Futungo de Belas. Posto em liberdade, disse, passou a temer pela vida e nesta época já gozava de uma certa simpatia de algumas figuras políticas e religiosas com influência­s como o falecido escritore deputado Mendes de Carvalho, o Cardeal Dom Alexandre do Nascimento e o escritor e

antigo Presidente da Assembleia Nacional Roberto de Almeida que o acolheram e assegurara­m que iriam reverter a situação de modo a minimizar os receios que temia pela sua sobrevivên­cia.

Mito Gaspar revela que as razões pelas quais o fizeram regressar para a sua terra natal podem ser múltiplas, mas apega-se no facto de q ue nunca t e r s i doum homem das grandes cidades, no entanto, entendeu que a

permanênci­a em Luanda resultaria somente pela construção de uma trajectóri­a a r t í s t i c a no mundo da música. “Havia o problema da inserção ao meu meio linguístic­o e sociocultu­ral que prezo muito e faço questão de manter vivo.”

Um das maiores referência­s da música tradiciona­l revela que na capital do país havia poucas possibilid­ades de conseguir manter no activo os seus costumes. “Não me revia ficar a falar português todo o tempo, uns porque se sentem diminuídos, outros, porque se quer conhecem e dominavam as línguas nacionais, poucas eram as oportunida­des, mesmo no meio artístico, nas quais me poderia comunicar na minha l í ngua materna, manter viva os costumes do meu povo”.

Por outro lado, Mito Gaspar conclui que já não tinha nada por conquistar em

Luanda e preferiu não ser mais um, daí,ter decidido enveredar para o empreended­orismo, coisa que sempre quis fazer. “Sempre tive uma paixão para o turismo e a hotelaria. A capital não me oferecia as condições, razão pela qual, regressei para Malanje, província que melhores condições tem pelos seus recursos naturais e paisagísti­cos para a implementa­ção de projectos no ramo do turismo”.

No cume da carreira

Sempre tive uma paixão para o turismo e a hotelaria e a capital do país já não me oferecia as condições necessária­s, por isso regressei para Malanje

No auge da carreira, Mito Gaspar toma a decisão de fazer algo mais para além da música. Quando tinha acabado de fazer sair o terceiro disco “Pambuya Njila”, em 2005, decidiu regressar para a terra dos ancestrais e de l á, criar um projecto de sustentaçã­o para o futuro, quando sentir já não existir força suficiente para continuar a deixar o legado na música. “Procurei desenvolve­r uma actividade na qual pudesse viver com alguma dignidade, porque da música não é possível, pelo menos, no estilo de música que faço”, admitiu.

O que para muitos poderia parecer um caminho inverso, Mito Gaspar deu uma resposta vitoriosa a todos aqueles que duvidavam do seu sucesso no campo empresaria­l. Contrariam­ente àquilo que muitos colegas das artes fazem, Mito Gaspar referiu que preferiu fazer diferente. “Depois de tudo conquistad­o na música, não tinha mais nada para aprender em Luanda, por isso, não tive receio do fracasso quando decidi regressar para as minhas origens”.

O seu conceito de vida rural, contacto com a natureza, sublinhou, não se enquadrava com as grandes cidades, muito menos, o seu género musical. Luanda, reconheceu oferece condições de trabalho melhores que as demais províncias. Quanto muito, disse, são as questões técnicas, os estúdios, as possibilid­ades de encontrar mais músicos para as parcerias, mais oferta para a produção musical que levam os artistas a fixarem residência em Luanda. “Continuamo­s a ser poucos a fazer géneros musicais tradiciona­is por causa da pouca oferta e ser ainda um mercado fechado em Luanda, diferente em outros cenários do país.”

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DR Mito Gaspar regressa para a sua terra natal e diz nunca ter sido um homem das grandes cidades

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