Jornal de Angola

O fundamento do costume jurídico em Norbeto Bobbio

- Luís Kandjimbo |* *Ph.d.emestudos deliteratu­ra,m.phil. emfilosofi­a

No texto publicado no dia 14 de Agosto de 2022, referi que os cultores do Direito Comparado e da Filosofia do Direito na CPLP, deviam conhecer o modo como se pode explorar a experiênci­a jurídica africana. Procedi à releitura das propostas do jusfilósof­o nigeriano T. Olawale Elias,(1914-1991), que defendia a tese segundo a qual o costume constituía direito positivado. Com a presente reflexão, tenciono voltar ao pensamento do jusfilósof­o nigeriano Olawale Elias, no cruzamento com as ideias do jusfilósof­o italiano Norberto Bobbio.

Norberto Bobbio, juspositiv­ista analítico

No referido texto, considerei que, na história do Direito europeu e norte-americano, o costume jurídico passou, a partir de determinad­o momento, a ser qualificad­o como uma fonte menor do direito interno e, por isso, lançado para o campo dos estudos da antropolog­ia, da sociologia ou da filosofia. Os dois jusfilósof­os mencionado­s adoptaram perspectiv­as diferentes, ao abordar a normativid­ade do costume e a sua juridicida­de. T. Olawale Elias explorou a informação que a antropolog­ia africana produziu sobre a matéria, aplicando os modelos da tradição analítica inglesa. Norberto Bobbio assumiu uma postura rigorosame­nte comprometi­da com o chamado positivism­o jurídico analítico. É da perspectiv­a bobbiana que me vou ocupar em seguida. Quem foi Norberto Bobbio (1909-2004)?

Norberto Bobbio nasceu na cidade italiana de Turim. Obteve a licenciatu­ra em 1931 com uma dissertaçã­o sobre filosofia e dogmática do direito. A formação em filosofia foi concluída dois anos depois comum trabalho sobre a filosofia do alemão Edmund Husserl. Iniciou a sua actividade docente em meados dos anos 30 do século XX. Leccionou nas universida­des de Camerino (1936-1938), Siena (19381940) e Pádua (1940-1948). Em 1948 alcançou a categoria de professor catedrátic­o de Filosofia do Direito na Universida­de de Turim. Na década de 70, foi transferid­o para a Faculdade de Ciências Políticas da mesma universida­de. Começou a publicar nos anos 30, fazendo parte desse catálogotr­abalhos sobre a fenomenolo­gia de Husserl, lógica do direito e o texto que aqui comentamos, consagrado ao costume como facto normativo. Norberto Bobbio revelou-se como seguidor da doutrina pura do direito, tendo assumido as posições do jusfilósof­o austríaco Hans

Kelsen, com quem se encontrou na cidade de Paris, em 1957, durante o primeiro Congresso do Instituto Internacio­nal de Filosofia Política. Da sua obra destacam-se alguns títulos: Estudossob­rea Teoria Geral do Direito (1955),Teoriadano­rmajurídic­a(1958),teoriadoor­denamentoj­urídico(1960),o Positivism­ojurídico.lições defilosofi­adodireito(1961), Jusnatural­ismoeposit­ivismo Jurídico(1967),daestrutur­a àfunção.novosestud­osem Teoriajurí­dica(1977).

O retrato que se tem de Norberto Bobbio assenta na imagem de um ensaísta e intelectua­l que emerge na esquerda académica italiana cuja produção fiosófica é marcada por um severo antidogmat­ismo.os seus biógrafos destacam a suaindepen­dência perante as malhas do poder, os partidos, o mundo da riqueza e da bajulação. Faleceu em Janeiro de 2004, aos noventa e cinco anos de idade.

Problemati­zação do costume jurídico

No contexto angolano, a pro

blematizaç­ão do fundamento do costume jurídicode Norberto Bobbio não é suficiente­menteconhe­cida. Parao conhecimen­to e divulgação das suas teses sobre o costume jurídico, o autor destas linhas contribuiu com um trabalho académico de cariz jusfilosóf­ico. A questão do fundamento do costume éaflorada, indirectam­ente,na tese de d o utoramento c o m o título“legalidade Penal, Costume e Pluralismo Jurídico: A Experiênci­a Angolana. O(s) Direito(s) e os Factos” da penalista angolana, a professora

Luzia Sebastião, através de uma abordagem que procura defender a legitimaçã­o disciplina­r e dogmática do Direito Penal Consuetudi­nário. Da sua leitura dois aspectos me parecem relevantes para o tópico vertente. Em primeiro lugar, a posição que a jurista angolana toma perante a problemati­zação hermenêuti­ca do artigo 7º da Constituiç­ão da República de Angola, ao trazer à colação a possibilid­ade de a referida norma ser classifica­da como “regra de reconhecim­ento”, de acordo com as propostas do jusfilósof­o britânico,herbert Hart. Em segundo lugar, a importânci­a que atribui ao costume como fonte do direitoe a adopção de posições anti-positivist­as, além de considerar indefensáv­ela absolutiza­ção do direito angolano enquanto monopólio do Estado.

Ora, ao tematizar o fundamento do costume jurídi c o , Norbe r t o Bobbio inscreve-ona categoria de factos normativos propriamen­te ditos. Por essa razão, formula uma definição genérica segundo a qual o costume jurídico é um facto constituti­vo de regras gerais. Estaspress­upõem a formação de uma autoridade social, entendida como força coesiva de uma sociedade organizada.consequent­emente,ide ntifica a existência de duas formas típicas que dão lugar à autoridade social: 1) a inconscien­te e involuntár­ia, associada à tradição; e 2) a consciente e voluntária, associada à formação de uma vontade dominante. A este propósito, Bobbio entende que a tradição, deorigem imemorial,é um facto que ocorre no tempo. A vontade dominante é um acto pontual, ancorado ao poder de comando.

Autonomia do costume jurídico

Uma das vertentes em que se desenvolve a reflexão de Norberto Bobbio visa responder àsseguinte­spergunt a s : O q ue di s t i ngue a “norma legal” da “norma do costume”? Qual é o traço distintivo do “costume legal” peranteo “costumenão-legal”? Para o efeito, escreveu o livro com o título “La Consuetudi­ne come Fatto Normativo”, (O Costume como facto Normativo), publicado em 1942, quando era professor de Filosofia do Direito na Universida­de de Pádua. As respostas de Bobbio apontam para a determinaç­ão do fundamento, a necessidad­e de saber se o Direito Consuetudi­nário pode ser o constituíd­o por costumes.

Norberto Bobbio elaborou uma síntese histórica da tradição ocidental e identifico­uposiçõese debates sobre o fundamento­do costume que podem ser classifica­dos em três categorias doutrinári­as: a) a “doutrina tradiciona­l”, a romano-canonista, segundo a qual o direito escrito como direito autêntico, atribuindo ao direito consuetudi­nário eficácia num sistema jurídico em que a fonte preeminent­e é a lei, assimiland­o a norma consuetudi­nária à norma legislativ­a, sendo a vontade popular o fundamento da lei; b) a “doutrina da Escola Histórica alemã”, que se caracteriz­a pelo facto de o fundamento ser confundido com a fonte. Atribui-se ao direito popular as caracterís­ticas de direito consuetudi­nário, e ao direito consuetudi­nário as caracterís­ticas de direito popular, por um lado, o povo é o fundamento, por outro lado, admite-se que o costume seja fonte do direito não popular; c) a “doutrina moderna” funda-se na ideia segundo qual não existe um costume que seja jurídico em si mesmo, na medida em que a norma consuetudi­nária adquire força obrigatóri­a apenas com o reconhecim­ento do juiz, sendo que o direito consuetudi­nário caracteriz­a-se pela sua formação pré-legal.

A dado passo do seu livro, Norberto Bobbio entende que fica demonstrad­a a autonomia do costume jurídico. Enquanto fonte de direito, tem o seu próprio fundamento e o critériode determinaç­ãodaexistê­ncia do direito consuetudi­nário é o conceito de direito, contrariam­ente aos que defendem a experiênci­a jurídica concreta.

Fundamento o costume jurídico

No entender denorberto Bobbio, entretanto, as principais doutrinas sobre o fundamento do costume jurídico não estão imunes de críticas. Pelo contrário, são elas que suscitam a seguinte questão: Qual é o fundamento do direito consuetudi­nário?

Bobbiocome­ça por considerar que o problema do fundamento j urídico é um problema mal colocado. Por isso, formula a sua resposta nos seguintes termos. Se o fundamento éde ordem jurídica, concernent­e à validade ou obrigatori­edadejuríd­ica, o fundamento específico do costume, comparando-o com as outras fontes, não existe fora dele. O jusfilósof­o italiano sustenta que do mesmo modo que a ninguém ocorreria colocar o problema do fundamento particular do “direito legislativ­o” e do “direito judiciário”, não é legítimo levantar a questão relativame­nte ao direito consuetudi­nário.

Evidencian­do a sua identidade de juspositiv­ista anal í t i co, Norberto Bobbio afirma que oproblema da fundamenta­ção do direito consuetudi­nário esconde mal a atitude geralmente negativa assumida pelos juristas perante o costume. Trata-se de um preconceit­o queé suportado por duas ideias: a) a consistênc­ia do direito consuetudi­nário dependente de pontos de apoio externos; b) a dignidaded­o direito consuetudi­nário derivada, resultando sempre da superação do facto costumeiro, em virtude de representa­r uma distorção de natureza jurídica.

Norberto Bobbio foi chegando à conclusão de que o direito consuetudi­nário era um facto normativo, sendo legítimo reconhecer a sua validade e eficáciain­trínsecas. Invocar fundamento antes e fora do facto consuetudi­nário significa negar a autoridade social da tradição e, por conseguint­e, a constituti­vidade normativa de uma repetição constante e uniforme. Assim, o direito consuetudi­nário passaria a ter a leicomo fonte,presumindo-se que deva ser considerad­a superior.

Constituti­vidade normativa

Nos capítulos finais do seu livro, Norberto Bobbio tratou de um problema que, cerca de seis décadas depois, continua a ser representa­tivo da negligênci­a com que se estuda o costume jurídico e a sua formação. À luz do pensamento doutrinári­o dominante na tradição ocidental, a constituti­vidade normativa do costume jurídico foi, durante muito tempo, apres entadacomo processo sustentado por uma estrutura conceptual de dois elementos: o externo, comportame­nto e sua a repetição; o interno, psicológic­o, espiritual ou “opinio juris”. No entender de Norberto Bobbio, esse segundo elemento configurav­a já um equívoco. Representa­va uma ameaça para a construção do costume como facto normativo, sendo hostil ao direito consuetudi­nário porque tendencial­mente esvazia seu conteúdo e enfraquece a sua eficácia. Por essa razão, a “opinio juris” é cada vez mais questionad­a pelos jusfilósof­os. Os debates que ecoam as reflexões de Norberto Bobbio sugerem a valorizaçã­o do “usus” como regularida­de de comportame­nto e a eliminação da “opinio juris”do quadro conceptual do costume. Apesar disso, a“opinio iuris” pode eventualme­nte serum critério da legalidade e fundamento de qualificaç­ão jurídica.

Em conclusão, se a convicção popular éo fundamento do direito consuetudi­nário, a “opinio iuris” não pode ser um dos seus elementos constituti­vos. É apenas uma modalidade dos actos que constituem a repetição constituti­va do costume jurídico. A convicção popular, a crença colectiva,éque está na origem do processo de formação do costume. Não pode ser a “opinio iuris”.

Como se constata, a problemati­zação do fundamento do costume jurídico a que Norberto Bobbio dedicou um livro, ainda hoje, suscita pleno interesse, no contexto dos debates interdisci­plinares que a interpreta­ção e a reflexão filosófica da Constit uição da República de Angola podem desencadea­r.

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