Jornal de Angola

“Que os mais-velhos tivessem a coragem de nos ler”

- Katiana Silva

Autor dos livros “A Vila Assombrada pelos Makixi” (Volumes 1 e 2), “Afroerotis­mo em Contos”, “Mil Correspond­ências” e coautor de “Karingana 2 povos - 2 contos”, o escritor Lucas Cassule é também fundador da “É Sobre Nós Editora”, que lançou em 2021 o portal “É Sobre Ler”. Integrante da dinâmica geração de escritores que procura afirmar-se no cenário literário nacional, Lucas Cassule, na entrevista que se segue, fala das suas inquietaçõ­es e do seu universo enquanto homem das letras. “Que os mais-velhos tivessem a coragem de nos ler e apoiar o nosso trabalho, mais do que apenas tecer duras críticas”, afirma o escritor

Como se inicia na literatura? E o que ela representa para si?

A minha jornada na escrita começou no final de 2018, mas sempre gostei dos livros, do universo da ficção e toda a envoltura nela. O gosto pela leitura começou na 6ª classe, fruto de um trabalho de investigaç­ão sobre quatro biografias de escritores angolanos em que tínhamos também de apresentar uma espécie de resumo dos livros. Foi ali que descobri que esse conjunto de papéis compilados traziam um universo de vidas e sonhos. Hoje, a escrita e a leitura representa­m tudo o que eu sou, tudo o que as pessoas conhecem ou ouvem sobre mim.

Quais são as suas referência­s? Há escritores angolanos pelos quais nutre admiração?

Tenho tido vários mestres. No início era o kotauanhen­gaxitu, justamente por ele trazer nos seus textos a riqueza do folclore angolano e a narrativa satírica e regional carregada de grandes lições. Foi certamente o meu primeiro impulsiona­dor para escrever o meu primeiro livro, “A vila assombrada pelos makixi”, tal como o contei. Depois foram surgindo outras referência­s, Victor Amorim Guerra foi o meu primeiro mentor e ainda o é até hoje. Tenho lido José Eduardo Agualusa, Ondjaki e hoje leio muito mais o Pepetela (por razões muito minhas). Dos jovens tenho também oportunida­de de ler bons textos que me ensinam a elaborar uma boa prosa, destes posso citar o Sérgio Fernandes, Stella Constantin­a, Dias Neto, Diego, e tantos outros. No campo dos textos líricos, gosto de ler António Agostinho Neto, Alda Lara,rasNguimba­ngola, Hélder Simbad,verónica Nanuvem, Mira Clock, Sandra Bande, Victor Francisco Ricardo, Luzineide Tomás, e claro, Cremilda de Lima. Leio também muita literatura estrangeir­a, na sua grande maioria os clássicos. Dos mais contemporâ­neos aprecio o José Luís Peixoto, Mia Couto, Nicholas Sparks, John Green, Paulo Coelho, E L James, Jorge R. R. Martin, Stephen

King, Charles Bukowski e tantos outros. Faço essa jornada toda, essa mistura entre o nosso e o dos outros, a prosa, a poesia e outros géneros e subgéneros para que no conjunto eu possa construir a minha própria técnica.

Como olha para o testemunho entre as gerações?

Essa é uma boa pergunta. Eu esperava um cenário bem diferente, gostaria que esse testemunho se fizesse passar além dos livros. Por exemplo, gostaria que os eventos de lançamento­s também fossemaflu­ídos pelos kotas, conforme os mais novos vão aos seus lançamento­s e discutem os seus trabalhos (nós apoiamos os kotas). Que os mais-velhos tivessem a coragem de nos ler e apoiar o nosso trabalho, mais do que apenas tecer duras críticas, porque ninguém consegue travar o tempo, a nossa literatura, com debilidade­s ou não, vai marcar a nossa época. É verdade que as críticas são necessária­s, mas há, por exemplo, bons livros escritos por jovens desta época e não se vê os kotas a aplaudirem e apoiarem. Temos alguns mais-velhos que o fazem, é verdade, aprecio, por exemplo, o trabalho do professor José Luís Mendonça, da tia Cremilda de Lima, que reservam o seu tempo para participar e apoiar iniciativa­s dos jovens. Nós, no nosso tempo, temos tentado fazer a diferença, a maior parte dos autores apoiamse uns aos outros e é essa dinâmica que queremos continuar a massificar e passar para a próxima geração. União, Ubuntu, porque se um de nós conseguir furar fronteiras (e isso há-de acontecer um dia) é a bandeira de Angola que vai levar.

Quais são as suas grandes ambições?

Tenho muitos sonhos. Já uma vez eu disse que são tantas coisas por realizar que dentro de mim devem coabitar mais de mil homens. Quero melhorar cada vez mais os meus escritos, ser traduzido e lido mundialmen­te e ver as minhas histórias adaptadas ao cinema. “A vila assombrada”, por exemplo, seria um grande fenómeno para Angola

se fosse realmente apoiado, expandido e adaptado ao cinema, era bom para Angola e para a África. O livro “Mil Correspond­ências” daria uma boa novela nacional, isso e tantos outros títulos. Também gostaria de fazer mais projectos que visam massificar o hábito de leitura e engrandece­r o mercado do livro em Angola. O projecto da criação do Portal da Literatura Angolana “É SOBRE LER”, nasceu exactament­e para esse fim, expandir o património literário, incentivar o hábito de leitura e potenciar rendimento­s a quem por exemplo não tenha condições de editar um livro, utilizando a ferramenta mais poderosa actualment­e, a internet. Porque as publicaçõe­s são autónomas e podem ser feitas a partir de qualquer lugar do mundo. Quero também ganhar os prémios mais importante­s da l i t eratura nacional e internacio­nal. Olha, a nível colectivo quero poder contribuir de forma acentuada para a projecção de mais escritores da minha época e tornar a É SOBRE NÓS EDITORA cada vez eficiente e representa­tiva para Angola e não só.

Quais as grandes dificuldad­es de um jovem escritor?

As dificuldad­es são inúmeras, começa com o mercado finito

de leitores. Precisamos pôr em prática o plano nacional de leitura, criar institucio­nalmente diversos programas que incentivem à leitura, desde as famílias até as instituiçõ­es, para que o mercado cresça e as entidades possam olhar para isso como um bom lugar para investir, apostar em marketing. Se o mercado não cresce, não há patrocinad­ores e os autores não têm recurso para suportar a autopublic­ação. A outra questão está ligada ao preço do livro e isso parte da própria produção. Os custos de impressão são ainda muito elevados , s e g u n d o o q u e sabemos não há subvenção de impostos nem temos fábricas de papéis, que é a matéria-prima fundamenta­l. Em suma, é um dilema que deve ser encarado no ponto de vista global, os privados (autores, editoras, clubes de leitura, biblioteca­s e outras entidades) têm desenvolvi­do pequenas iniciativa­s para mudar o quadro, mas precisamos de mais, precisamos de apoios do Estado e das instituiçõ­es. Todos os países desenvolvi­dos têm uma biblioteca em cada esquina, os alunos têm a obrigação de ler vários livros durante o ciclo de ensino, isso porque eles descobrira­m desde muito cedo que o segredo do desenvolvi­mento está aí.

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