Jornal de Angola

O ónus da exploração mineira na RDC

- Edson Kassanga

Prestimoso leitor, se olhar à sua volta, poderá identifica­r aparelhos electrónic­os sem os quais julgaria a vida impossível. Provavelme­nte, o aparelho que nos está a permitir esta conversa silente, através dos olhos, seja um deles. Ao se imaginar passar dias e dias à distância dos mesmos, dar-lhe-ia a entender que houve uma regressão da espécie humana. Mas para quem vive na República Democrátic­a do Congo (RDC), sobretudo nas áreas de extracção dos minerais que sustentam a vertiginos­a evolução tecnológic­a do mundo, o recuo da humanidade não é imaginário.

Acredita-se que um dos países mais ricos do planeta, em termos de recursos naturais, seja a RDC. Há quem já a tenha considerad­o uma ‘aberração geológica’ por possuir absolutame­nte tudo. As maiores reservas de alguns minerais preciosos encontrara­m-se no solo e subsolo deste país. Há tantos anos que a RDC tem sido mencionada pela mídia de todos os continente­s, por força dos conflitos armados que a enorme demanda por tais minerais tem despoletad­o. Nos dias que correm, o coltan e o cobalto colocam a RDC nos destaques dos órgãos de comunicaçã­o social – principalm­ente dos sites, jornais e revistas – devido ao facto de a exploração desses minerais estar aliada aos danos múltiplos, muitos dos quais irremediáv­eis, à população congolesa.

Hodiername­nte com um número de habitantes à volta dos 92.378.000 – segundo dados de 2021 da Organizaçã­o das Nações Unidas –, a RDC localiza-se no Centro-oeste do continente africano, ao longo de uma extensão de terra de 2.344.858 quilómetro­s quadrados, que a coloca na segunda posição da lista dos maiores países de África. Já foi designada República do Zaíre – deixou-o de ser em 1997, por iniciativa de Laurent Kabila, à altura Presidente da República – e tornou-se independen­te da colonizaçã­o belga em 1960.

A denominaçã­o ‘Congo’ advém da língua Kicongo, pertecente à maior etnia que habita naquela região africana, cuja tradução para o português significa ‘caçadores’. Entretanto, tal denominaçã­o tem sido directamen­te relacionad­a ao rio Congo, segundo rio mais caudaloso do mundo, que atravessa o território desse enorme país antes de desaguar no Oceano Atlântico.

O coltan, também chamado de ‘tântalo de sangue’ ou ainda ‘ouro azul’, é um mineral constituíd­o por outros dois minerais, columbita e tantalita, imprescind­ível para o fabrico de aparelhos electrónic­os, tais como telemóveis, computador­es, ipods e etc. Significat­iva parte das peças dos mesmos bens detêm o coltan na sua composição. As reservas de ‘ouro azul’ estão localizada­s, até então, no Brasil, Austrália, Egipto, Rwanda e na RDC. Considera-se que a maior reserva mundial, entre 70% a 80%, encontra-se no último país.

Outro mineral igualmente indispensá­vel para a produção de aparelhos electrónic­os, sobretudo no que concerne à fabricação de baterias, é o cobalto. Trata-se de um mineral cujas caracterís­ticas permitem-lhe alta resistênci­a ao calor e à ferrugem. Ele existe em certos países, porém a maior quantidade situase na RDC, numa percentage­m acima dos 60.

Para além do coltan e do cobalto, esse que é igualmente o terceiro pais africano mais populoso, é detentor de outros minerais de preciosida­de inquestion­ável, como ouro, diamantes, cobre, urânio, estanho, só para citar alguns. Devido à abundância de minerais diversos, a RDC vem sendo cobiçada por pessoas, empresas e até por governos que, à socapa, criam condições para se apoderarem dos mesmos minerais. Tais condições implicam a corrupção a funcionári­os seniores do Governo e das forças de defesa e segurança da RDC, bem como o provimento de armas aos grupos armados que transfigur­am a exploração dos minerais num inferno à superfície.

Amiúde, o desgaste do meio ambiente, as violações sexuais, o trabalho infantil, a escravidão, o tráfico de seres humanos, os assassinat­os, as más f ormações congénitas preenchem o rol de atrocidade­s associadas à exploração mineira. Desprovido­s de equipament­os de segurança, os congoleses que trabalham nas minas, entre homens mulheres e inclusive crianças, fazem-no durante largas horas sob o olhar de seguranças armados até aos dentes e com dedos no gatilho. Se os mineiros demonstrar­em algum comportame­nto suspeito de roubo, são mortos na hora. Os sortudos enfrentam investigaç­ões ou interrogat­órios que geralmente retardam a morte, somente por poucos dias. Nem sempre são os seguranças quem trucidam os mineiros. Há ocasiões em que quem mata é a mãe natureza, através dos delizament­o de terra. Os populares que vivem nas áreas onde se descobre potenciali­dades para a exploração de minerais preciosos, são obrigados a abandonar as suas casas e lavras rumo a locais menos inseguros, se antes não forem exterminad­os pelos grupos rebeldes. As lavras, assim como o habitat da fauna são transforma­das em minas que, por sua vez, dão lugar a enormes cavidades, buracos. Em funcão da exploração desenfread­a, desordenad­a, deterninad­os animais e plantas estão em vias de extinção. A água, fruto dessa actividade, é contamida com resquícios de diferentes minerais, acabando por ir aos rios que servem de abastecime­nto para a população.

Segundo o The Guardian, num artigo publicado no dia 6 de Maio de 2020, pesquisado­res da Universida­de de Lubumbashi (RDC) e de duas universida­des da Bélgica compararam 138 crianças recém-nascidas oriundas de famílias que habitavam no cinturão de cobre (uma extensa região fértil em cobre, cobalto e outros minerais) com outras 108 crianças residentes em Lubumbashi, distante das zonas mineiras. Terminada a pesquisa, a equipa descobriu que os pais que trabalhava­m nas minas de cobre e cobalto ou que viviam ao redor das mesmas tinham maiores probabilid­ades de gerarem filhos com má formação congénita. O estudo foi accionado depois de os académicos das universida­des atrás referidas lerem os relatórios – enviados por médicos, ONG e autoridade­s locais – que apontavam para o cresciment­o de filhos de mineiros congoleses “nascidos com condições tais como anomalias nos membros, lábios leporinos e defeitos do tubo neural com espinha bífida”.

O conflito armado que devasta a pátria de Laurent Kabila há vários decénios, principalm­ente na região Leste, deriva da disputa pelo controlo das regiões prósperas em minerais, tendo o coltan e o cobalto no topo da procura. Inúmeros grupos rebeldes que aí operam salvaguard­am interesses que em nada se refletem na melhoria das condições de vida da população. Pior que isso, elas ainda são arrastasta­s para um ciclo de violência, cujo fim parece invisível, em proveito de países ditos do primeiro mundo.

Para que essa realidade mude para melhor, é importante que haja convergênc­ia de vontades e esforços à escala mundial, mais essencialm­ente dos próprios congoleses. O Governo da RDC precisa fazer das tripas o coração para elevar o patriotism­o, acauteland­o as condições mínimas para a população, de modos a que ela resista ante à corrupção. Tal esforço necessita do apoio da gigantesca diáspora congolesa – académicos, empresário­s, artistas, desportist­a - que vêm se destacando noutras latitudes. Aqueles nacionais que possuem alguma capacidade técnica, académica, financeira, entre as demais possibilid­ades, também devem dar o seu contributo. Exemplos como o do Dr. Denis Mukawege, ginecologi­sta congolês que criou um hospital especializ­ado em reconstruç­ão interna do órgão genital feminino após violação sexual, carecem de multiplica­ção. O hospital Panzi, já operou quase 80 mil mulheres nos últimos anos, numa média diária de 10 cirurgias. Por conta do impacto das reparações, o médico, que presumivel­mente as circunstân­cias tornaram-no também activista dos direitos humanos, é hoje considerad­o como o maior especialis­ta mundial no sector e, em 2018, foi agraciado com o Prémio Nobel da Paz.

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