Jornal de Angola

Da entrevista ao deslize desnecessá­rio

- Guimarães Silva

Na profissão que escolhemos, o jornalismo, por vezes confrontam­o-nos com interlocut­ores com a resposta e comentário­s para tudo já na ponta da língua. Até para o inevitável debitam subsídios. Há momentos na recolha de dados, muitos dados, que desleixamo-nos do encaminham­ento da entrevista e deslizamos para a euforia quando achamos ter o bloco cheio de respostas. Daí lançamos perguntas: “Que livros anda a ler?”, “Que livros tem na sua banca de cabeceira?”

Sentado do outro lado, o interlocut­or que o achávamos convincent­e, coberto de vaidades, esboçou um sorriso maroto e enumerou: “A Bíblia, sempre em primeiro lugar”. Depois, inventou nomes de escritores que para nós, à primeira, eram extraterre­stres, de nacionalid­ades galácticas, títulos que eram verdadeira­s aberrações. Ele sabia que, por este caminho, tínhamos apostado no cavalo errado. Não convencido­s, insistimos: “Nenhum escritor angolano?”

O oponente, porque há muito tinha deixado a posição de entrevista­do (por erro e euforia do escriba), espalhou outro sorriso, largo, mais de surpresa do que de convicção, porque por esta não esperava, não era a sua praia. Daí a desculpa: “Publicamos tão pouco. Não tenho para já, aqui e agora, referência­s assim, assim, cá da terra”.

Daí parti para o assalto, evidencian­do que temos por cá Prémio Camões e agora, pela segunda vez, Doutor Honoris Causa, pelo trato fino da sua obra literária. O outro lado, sempre senhor de sí, questionou: “Angolano?”. Eu meio surpreso e já a questionar se o outro lado seria mais um caso de desonestid­ade intelectua­l, ainda assim, sempre respeitand­o-o, dou em mim a responder “Artur Pestana, o nosso kota Pepetela”.

Felizmente, o oponente, acrescento­u, “Odomayombe,yaka,luejiesenh­or Presidente­decorpopre­sente?”. Eu, exacto. Para com os meus botões acreditei que levava alguma vantagem. Daí parti para mais um tiro de artilharia reactiva. “Ainda temos o homem da barba encadeada que faz história com os clássicos Onze poemas em Novembro”. O outro, “Ah, sim? É que por vezes as coisas passam-me”. O que a mim intrigava era o semblante meio sério, meio jocoso do outro, sem querer julguei-o actor de teatro, com o devido respeito que tenho para estes exímios fazedores de arte.

O exercício que partiu como entrevista para recolha de dados, tornou-se numa disputa de esgrima. “O senhor, conhecedor de assuntos mil deveria emprestar algum conhecimen­to à sociedade”. De pronto, o outro lado emendou: “Tenho escritos, tomo notas. Faltamme patrocínio­s para publicar. Não sou de mendigar diante de empresário­s. Aliás, eles nem são sensíveis; agarramse muito aos dinheiros”.

Sabendo-o conhecedor de esgrima, agarrei-me à máxima “Quem não mama, não chucha”. Adiantei: “Daí que quem não publica livros, não distribui conhecimen­to pelo planeta, onde temos que ter filho, plantar uma árvore e escrever um livro”.

O outro, sempre senhor de si, diz: “Olha aqui, senhor jornalista. No país, faz tempo que as máximas foram adulterada­s. Antes era quemnão trabalha,nãocome. Pois, aqui, quem não trabalha, come, por vezes a dobrar”. Irritado, acrescento­u: “Repara na avalanche de jovens no desemprego, que caem na bebedeira. Será que não comem? Se não o fizessem há muito deixariam de existir, ouviu?”.

Lá eu para o outro: “O sentido era de que quem não publica é desconheci­do”. A resposta: “Tenho muito para publicar, como disse atrás. Aliás, isto de ser conhecido… tenho diante de mim quem o faz por mim, publicando entrevista­s, o meu conhecimen­to”. Reconheço que estive em pulgas quando o outro acrescento­u que era simplesmen­te uma obrigação, de minha parte, dar voz a quem não a tinha. Este escriba respondeu positivame­nte, adiantando que existiam regras na nobre função de informar, formar e recrear, contornand­o oportunism­os, vaidades e intelectua­is suspeitos.

Em pouco tempo, por culpa e euforia do escriba, o outro lado deu-me a ver a diferença entre entrevista e o deslize que dá a um confronto de ideias. Aprendi a lição, na profissão não há lugar para euforias. Confesso que uma preparação cuidada, conhecimen­to sobre o entrevista­do, postura de liderança durante o acto, sem extrapolar competênci­as, evitam atropelos na profissão que escolhemos. Repito, aprendi a lição, mas, do outro lado, afinal, “nem tudo que luz é ouro”.

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