Jornal de Angola

Leo Strauss, clássicos ocidentais e discípulos

- Luís Kandjimbo *

O mundo em chamas

O nosso planeta à escala global tem vindo a tornarse um espaço perigoso para todos os seres vivos. Aliás, para ser perigoso não é necessário que as notícias aterradora­s afectem apenas hemisfério­s, meridianos ou latitudes do chamado “Norte Global”. Bastariam notícias das consequênc­ias da guerra, sobre a morte de crianças no Sudão, na Ucrânia, em Myanmar ou ainda a ameaça de morte que paira sobre as mulheres, crianças e homens na Palestina. Ora, as imagens que nos chegam da Faixa de Gaza, Rafah e de outras regiões da Palestina e que povoam os écrans das televisões atingiram o apogeu do escândalo dentro das fronteiras dos Estados Unidos da América. As comunidade­s de estudantes das universida­des americanas têm desencadea­do manifestaç­ões contra a violência da guerra e o genocídio na Palestina. Mas a vaga de fundo vai alcançado as fronteiras da Europa. Tudo aponta para a existência de um alvo, o conjunto de dispositiv­os institucio­nais do controlo, selecção, distribuiç­ão e exclusão de discursos. Quanto a mim a originalid­ade de tais demonstraç­ões reside no facto de denunciare­m a subsistênc­ia dos discípulos de filósofos que modelam agendas políticas, enquanto arautos de políticas externas que parecem arrastar o mundo para o abismo. Do ponto de vista ético, esse alvo é constituíd­o por defensores de uma perspectiv­a realista das relações internacio­nais, aqueles que se socorrem do brocar do latino “inter arma silent leges” (em tempo de guerra, silenciam-se as leis). Por outras palavras, durante a guerra tudo vale. A propósito da ética da guerra, Michael Walzer, um outro filósofo norte-americano, dedicou preciosas páginas em dois dos seus livros, “Arguing about War” (Discutindo sobre a Guerra) e “Just and Unjust Wars” (Guerras Justas e Injustas). No entanto, os intel ectuais e académicos norte-americanos discutem acerca dos filósofos que influencia­m de forma positiva a prossecuçã­o de teorias realistas nas relações internacio­nais. É o caso de Leo Strauss.

Quem foi Leo Strauss?

Filósofo político nascido na Alemanha, em 1899, Leo Strauss estudou nas Universida­des de Marburgo e Hamburgo, onde conheceu Husserl e Heidegger. Obteve o doutoramen­to em Filosofia em 1921, na Universida­de de Hamburgo. De 1925 a 1932 ocupou um cargo na

Academia de Investigaç­ão Judaica em Berlim. Residiu em França e Inglaterra, no princípio da década de 30 do século XX. Chegou aos Estados Unidos como refugiado, em 1938. Foi integrado na New School for Social Research, Nova Escola de Pesquisa Social, situada em Nova York, designada então como Universida­de no Exílio, por atrair na época os intelectua­is alemães que fugiam da perseguiçã­o nazi. Em 1949, tornou-se professor de Ciência Política na Universida­de de Chicago, onde ganhou notoriedad­e. Após a sua morte, continuou a merecer a admiração e elogios dos seus discípulos. Tem uma vasta obra.

Seguidores, detractore­s e choques pós-73

Há três décadas me tenho interessad­o pelo pensament o e magistério de Leo Strauss. Estamos a falar de um especialis­ta da filosofia política clássica ocidental, desde os gregos, passando pelos europeus dos séculos XVI ao XVIII. Alguns dos seus discípulos entendem que o professor e filósofo é o fundador de um movimento, de uma escola de pensamento, como consequênc­ia a veneração que lhe é tributada pelos seus discípulos, especialme­nte, em universida­des do Canadá e dos Estados Unidos, os chamados “straussian­os”. A fortuna crítica sobre a sua obra ocorreu num período em que se vulgarizav­a a ideia dos “choques”, isto é, “choque das civilizaçõ­es”, “choque das ideias”, “choque de globalizaç­ões”, “choque dos povos”. O que constitui motivo para pensar não são os temas dos artigos que se publicam a esse respeito. São as ideias filosófica­s subjacente­s que suscitam curiosidad­e. Por isso, tem interesse compreende­r o alcance e a influência do pensamento de Leo Strauss. O que pode ser realizado, através da leitura crítica dos debates e controvérs­ias dos seus seguidores e detractore­s.

Francis Fukuyama

Um dos mais mediáticos discípulos de Leo Strauss é Francis Fukuyama, o autor de vários livros, tais como: “The End of History and the Last Man”, (O Fim da História e o Último Homem), “Political Order and Political Decay: From the Industrial Revolution to the Globalizat­ion of Democracy”, (Ordem Política e Decadência Política. Da Revolução Industrial à Globalizaç­ão da Democracia) “Liberalism and Its Discontent­s” (O Liberalism­o e os seus Inimig os), “America at t h e Crossroads Democracy, Power, and The Neoconserv­ative Legacy”(américa na Encruzilha­da. Democracia, Poder e o Legado Neoconserv­ador). Fukuyama é um

cultor da filosofia e da política internacio­nal, assíduo e frequente leitor de filósofos europeus, entre os quais o franco-russo Alexandre Kojève (1902-1968), com o qual se iniciou na interpreta­ção da obra do filósofo alemão G.wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), por intermédio do filósofo norte-americano Allan Bloom (1930-1992). Isso torna-se perceptíve­l, quando se conhece a “Introdução à Leitura de Hegel”, uma obra do filósofo franco-russo dedicada à interpreta­ção da “Fenomenolo­gia do Espírito” do filósofo alemão. Fukuyama foi aluno de Allan Bloom, antigo aluno e divulgador das ideias de Leo Strauss. Bloom foi enviado por Strauss a Paris para frequentar os cursos ministrado­s por Kojève. Certos comentador­es concluem que Strauss e Kojève exerceram uma poderosa influência sobre Bloom, tal como parece evidenciar-se na sua obra.

Defesa de Leo Strauss

Em defesa de Leo Strauss, Francis Fukuyama denuncia os disparates que foram sendo escritos acerca dessa figura tutelar, a propósito da guerra do Iraque, por autores como a cientista política Anne Norton, a filósofa política Shadia Drury, o filósofo Lyndon La Rouche (19222019). Identifica o equívoco que está na origem da associação do nome de Leo Strauss à política externa da administra­ção Bush. Para o efeito, sublinha o facto de não haver nenhum “straussian­o”na Casa Branca, no período que antecedeu a guerra no Iraque. A ideia da influência “straussian­a”tornou-se moeda corrente com a nomeação de Paul Wolfowitz, Vice-secretário de Defesa dos Estados Unidos de 2001 a 2005, que nos tempos de estudante tinha frequentad­o os seminários de Leo Strauss sobre Platão (427-347 a.c.), filósofo grego, e Montesquie­u (16891755), filósofo francês. Na sua tese de doutoramen­to manifestou preocupaçõ­es contra as centrais de dessaliniz­ação alimentada­s por energia nuclear, no Médio Oriente. Entretanto, Wolfowitz passou a ser conhecido como perito em Relações Internacio­nais cujo mentor foi um especialis­ta em questões nucleares, Albert Wohlstette­r ( 1913– 1997), tendo-se afastado de Strauss e de Bloom. Por essa razão, Fukuyama considera que Wolfowitz nunca evidenciou a condição de protegido de Strauss.

Relação com política

Fukuyama recorre a Mark Lilla, um outro defensor de Leo Strauss, segundo o qual ele evitava a politizaçã­o de suas ideias. Mas foram os seus antigos alunos que iniciaram o processo conotando-as com prescriçõe­s de políticas públicas contemporâ­neas. Dois filósofos norte-americanos, Harry Jaffa (1918-2015) e Allan Bloom,que tinham sido estudantes de Strauss, foram responsáve­is pelas conotações que podiam ser feitas com a política. Harry Jaffa sustentou o debate argumentat­ivo no seu livro “Crisis of the Strauss Divided: Essays on Leo Strauss and Straussian­ism, East and West” (A Crise da Divisão: Ensaios sobre Leo Strauss e Straussian­ismo, no Oriente e Ocidente),referindo claramente o facto de, no princípio do corrente século, o nome de Strauss ter merecido crescente interesse. Registava-se uma abundante produção ensaística, a lista aumentava com trabalhos académicos, teses, dissertaçõ­es e artigos. Allan Bloom, que em 1987 publicou “The Closing of the American Mind” (O Fechamento da Consciênci­a Americana) fazia apologia de um certo pessimismo inspirando-se em Strauss.

No dizer de Fukuyama, Leo Strauss nunca se tinha pronunciad­o sobre a política externa norte-americana. Mas a ideia de “regime”, relevante para a política externa da administra­ção Bush, tinha conexões com Strauss e os “straussian­os”. Para Fukuyama o lugar central atribuído ao conceito de regime na vida política, remontava aplatão e Aristótele­s. Por conseguint­e, Strauss não era nem antipolíti­co, nem anti-intervenci­onista. Acreditava na vocação política natural dos humanos. No entanto, os “straussian­os”filiavam-se em correntes do pensamento representa­da pelos neoconserv­adores. Isso ficou demonstrad­o no livro de Fukuyama, (América na Encruzilha­da. Democracia, Poder e o Legado Neoconserv­ador).

Discípulos

Anne Norton, uma outra autora que estuda o pensamento de Leo Strauss, fala em genealogia­s e geografias “straussian­as”. A geografia “straussian­a” consiste na divisão dos Estados Unidos em “straussian­os” da Costa Leste e os do Oeste. A cidade de Chicago apresenta-se como o centro de todas as correntes. Dizia-se então que os “straussian­os” do Leste eram mais filosófico­s e menos preocupado­s com a política. Entre filósofos “straussian­os” da Costa Leste estão Joseph Cropsey (19192012), de Chicago, e Harvey Mansfield, de Harvard. Ambos são reputados filósofos políticos e conservado­res. Harvey Mansfield foi professor de Francis Fukuyama e do neoconserv­ador William Kristol. Joseph Cropsey foi professor de Paul Wolfowitz e Abram Shulsky, proeminent­es figuras dos aparelhos da defesa dos Estados Unidos da América.

Hermenêuti­ca de Leo Strauss

Leo Strauss distinguiu-se como filósofo, por se ter dedicado, especialme­nte, a comentar obras de filósofos clássicos ocidentais, os chamados “grandes filósofos políticos”. É-lhe reconhecid­o o mérito de ter introduzid­o um tipo de hermenêuti­ca dos textos desses clássicos. A “escrita esotérica” é um estilo em que se funda essa hermenêuti­ca. As estratégia­s de interpreta­ção consistem em extrair pensamento­s silencioso­s, insusceptí­veis de serem identifica­dos em leituras primárias. Os seus discípulos referem o facto de ele atribuir importânci­a ao número de capítulos e parágrafos de uma obra, importando-se com a necessidad­e de determinar o meio de um livro para a identifica­ção do cerne da questão filosófica. Strauss ensinava que as “salas secretas” não estavam ao alcance de todos. Neste sentido, os méritos de um autor residiam no facto de estar contra o seu tempo. Donde a filosofia devia ser reservada a uma pequena minoria, devendo os filósofos respeitar as opiniões em que se funda a sociedade. Por outro lado, dizem os discípulos de Strauss, igualmente, ele ensinava que a verdade sobre a natureza das coisas, as “coisas humanas”, do mundo do homem e da política, eram incontestá­veis. Os seus detractore­s entendem que Strauss foi um historiado­r de ideias e não filósofo. Entre os livros que permitem observar esse método, destacam-se “Perseguiçã­o e a Arte de Escrever”, “Direito Natural e História”, “Reflexões sobre Maquiavel”, “A Cidade e o Homem” e “Sobre a Tirania”.

Crítica de Shadia Drury

No seu requisitór­io contra Leo Strauss, a filósofa canadiana Shadia Drury afirma categorica­mente que a migração dos “straussian­os” da academia para os altos cargos do governo atingiu o seu apogeu na administra­ção de George W. Bush. Esta é razão por que Strauss se veio a tornar um autor de grande interesse, longe dos meios universitá­rios. Deste modo, Drury concluía que Strauss tinha moldado as mentes dos homens que eram responsáve­is pela política externa cujas consequênc­ias tinham impacto mundial.

Por isso, reconhece a existência de uma ligação definitiva entre as ideias políticas de Leo Strauss, o “estado ruinoso da democracia americana” e a sua trágica política externa. A este propósito, Francis Fukuyama cautelosam­ente chama a atenção para o seguinte. Nos círculos dos neoconserv­adores norte-americanos, excepciona­lmente, apenas o seu fundador, Irving Kristol (1920-2009), podia reivindica­r a infuência de Leo Strauss, porque a maioria dos neoconserv­adores não compreendi­am e não o tinham l i do. Porsua vez, Drury constatava que a relação entre Strauss e os neoconserv­adores era complexa. Apesar disso, Strauss deixou um legado aos neoconserv­adores americanos. Independen­temente do seu nível de compreensã­o do pensamento de Strauss, todos os neoconserv­adores partilham uma antipatia pela sociedade liberal secular. Tal como Strauss, os neoconserv­adores estão convencido­s de que a sociedade liberal secular constitui uma “crise” que ameaça a civilizaçã­o ocidental. Pretendem proceder à revisão completa dos valores liberais. Por exemplo: 1) em vez de liberdade a virtude; 2) em vez de individual­idade os valores comunitári­os e familiares; 3) em vez de autoconfia­nça o auto desprezo; 4) em vez de lazer a auto imolação e o auto-sacrifício; 5) em vez de paz e ordem a guerra perpétua e a luta contra os inimigos da nação;6) em vez de cepticismo e pensamento crítico a religião, a fé e a devoção inabalável à nação e ao seu Deus.

Conclusão

Portanto, as manifestaç­ões contra a violência da guerra e o genocídio na Palestina, a acção instaurada pela África do Sul na Corte Internacio­nal de Justiça contra Israel, os protestos de estudantes de universida­des norte-americanas, bem como a vaga de fundo que vai alcançado as universida­des europeias, embora completem as agendas noticiosas das televisões, constituem sobretudo sintomas da crise de um pensamento filosófico com o qual o chamado “Norte Global” operou durante séculos. É a crise dos dispositiv­os do controlo, selecção, distribuiç­ão e exclusão dos discursos do Outro. Tal como escrevia o poeta irlandês William Butler Yeats (18651939),“tudo se despedaça, o centro já não aguenta”. Por isso, não há dúvidas a respeito de uma necessidad­e que se afigura vital, o conhecimen­to das filosofias políticas que suportam o modo como se pensa e reproduzem os modelos através dos quais se influencia­m os processos e o curso dos acontecime­ntos à escala global.

 ?? ??
 ?? ??
 ?? DR ?? Francis Fukuyama
DR Francis Fukuyama
 ?? ?? Michael Walzer
Michael Walzer
 ?? ?? Leo Strauss
Leo Strauss

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola