Jornal de Angola

Memórias e mitos da nossa História…

- Tazuary Nkeita

A minha relação com a música é comparável à dependênci­a i ncorrigíve­l que muitos terão do alcoolismo, para não citar piores vícios. Ninguém nos separa. Eram 03:10, de madrugada, e eu escrevia ao som do “Born in the USA”, uma das mais belas “tracks” musicais de Bruce Springstee­n, hoje já nos 74 anos. Como eu adoro o género deste genial compositor!

Poderia não ser o caso, pouco importa, mas Springstee­n dizia coisas difíceis de ignorar no equilíbrio das amarguras da vida: “Nasci sem nada, numa cidade pequena; comecei a levar panca das desde miúdo; parecendo um cachorro a apanhar”. Em Português, aceitaria que a tradução mais livre fosse “Nascer na América sonhada por Martin Luther King…”

“Se o senhor fosse norteameri­cano, seria milionário!”, ouvi um cidadão dos EUA exclamar um certo dia, em Pretória, África do Sul, diante do rico currículo do interlocut­or angolano. Diante dele, na altura, não me interessei em perguntar porquê, mas hoje, ouvindo Bruce Springstee­n cantar como um “Born in the USA” pode apanhar pancadas que nem cachorro, e ser milionário, tento fazer um recuo e buscar a razão de ser daquele comentário…

(…) e uma vez mais, os dois cidadãos norte-americanos teriam absoluta razão! A vida não é o que temos na mente, às vezes nossa pior inimiga. E, nascer e viver nos EUA, pode ter tanto de milionário como de cachorro, em termos de aprendizag­em, contra obstáculos. Qualquer um, é livre e tem mil oportunida­des para dizer o que entende, mas só terá valor se o “negócio” despertar o interesse de milhões, como o lema “Let’smake Money”; fazer dinheiro, como quis dizer o velho interlocut­or de Pretória.

Ainda continuava no minuto dez da hora três, à madrugada da última quinta-feira, como já disse, quando o Whatsapp emitiu o som de uma nova mensagem, a entrar. Descubro então que não era o único acordado, àquela hora. Quem me escrevia era um outro mito, o Leonel Romão, jornalista e também velho amigo.

Poucos terão ouvido falar do seu nome, mito em carne viva, “nascido em Angola”, também em sintonia com a música do velho Bruce Springstee­n, que ainda se fazia ouvir. Deixem- me apresentá-lo, associando o seu curriculum ao acontecime­nto que mais lhe prestigia, até hoje. O Leonel Romão, muito fluente em inglês, hoje diplomata com responsabi­lidades acrescidas no Instituto das Comunidade­s Angolanas no Exterior e Serviços Consulares do MIREX, foi o jornalista que traduziu a princesa Ladydi quando esta visitou Angola no ano de 1997, em missão contra o uso de minas terrestres.

Cinco anos mais tarde, fui à procura dele com a proposta de integrar uma caravana cultural que deveria visitar os Estados Unidos e que incluía, dentre outros, o memorável escritor e dramaturgo angolano Jorge Macedo. Infelizmen­te, o Leonel teve o telefone desligado durante vários dias e perdeu a viagem. Anos mais tarde, são dele as seguintes palavras:

“Ah…!!!, lembrei-me do dia em que procuraste por mim, para irmos aos Estados Unidos, e eu estava incomunicá­vel. O meu telefone estava avariado. (…) Aprendi a lição e, desde aquela altura, passei a ter mais cuidado e já visitei três vezes os ‘States’…”.

Sobre a experiênci­a com Diana Spencer, o Leonel também conta um episódio inédi t o, que faz dele um incontorná­vel mito, em carne viva: “Em 2007, eu estava em Londres e celebrava-se o 10º aniversári­o da morte da Princesa. Havia uma grandiosa procissão, configurad­a na deposição de flores no Palácio de Buckingham, e fiz questão de ir até lá. Havia uma terrível enchente, tanto de flores como de pessoas, e já ninguém conseguia chegar aos gradeament­os do quintal do Palácio Real. Eu levava uma cópia da revista britânica ‘Hello’ que tinha na capa a imagem da princesa Diana comigo e uma menina amputada que ficou famosa, a Sandra. Um jovem cameraman fazia filmagens e aproximei-me dele, mostrando-lhe a Revista. Tentei explicar-lhe a situação e as circunstân­cias em que aparecia naquela famosa capa…”, continuou a explicar ele, aumentando o meu suspense.

“O jovem retirou simplesmen­te a câmara de filmar e fugiu, como o diabo da cruz. Por muito tempo fiquei sem perceber o porquê. E, ainda hoje, tento buscar ilações, capazes de uma resposta assertiva”, concluiu ele.

Sem perder tempo, partilho com ele a música “Born in the USA” do Bruce Springstee­n, e também a minha história emocionant­e com o mister americano, dizendo-lhe:

“Leonel, se fosses norte-americano, serias milionário! ” . Estavaem Pretória, em 2012. Ao ouvir o invejável currículo do seu interlocut­or, o cidadão americano pôs-se de pé e, batendo continênci­a, afirmou literalmen­te. “Você é um mito em carne viva. Na América, seria milionário, acredite em mim”.

“Depois de apanhar que nem um cachorro, não é?”, mas faltaram-me as palavras certas da canção de Bruce Springstee­n para também lhe fazer fugir.

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DR Leonel Romão (ao centro) como intérprete da Princesa Diana

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