O musseque e a saúde
Há dias um Amigo (talvez o Gegé, que faz questão de partilhar com os amigos a boa informação a que tem acesso) envioume a versão eletrónica duma obra de 68 páginas publicada em 1973 pela Câmara Municipal de Luanda, com o título “Para a contenção e a erradicação dos musseques de Angola”. O autor, José Almeida Santos, foi durante vários anos funcionário da câmara, e publicou alguns trabalhos sobre planeamento urbano e habitação social.
O MUSSEQUE E A CIDADE Escrito há quase 50 anos, o texto tem ainda actualidade, pela maneira como descreve a dinâmica de formação destes bairros, os vínculos de propriedade, os aproveitadores do negócio, quer os donos dos terrenos, quer os intermediários e os fornecedores dos produto de construção, e a lamentável e degradante pobreza. Na altura a população do musseque, na categoria social 3, quanto a pobreza - constituía 3/5 da população de Luanda, e mais precisamente, 260.000 habitantes. O plano defendido pelo autor era a construção de habitações nos espaços vazios da cidade, eventualmente no próprio musseque, mas privilegiava o assentamento de 80.000 fogos (400.00 pessoas) nos terrenos que a Câmara havia então reservado na Camama para urbanização. Para este projecto defendia-se o tipo de construção térrea com quintal, com arruamentos, praças e zonas verdes, as infraestruturas de água, luz e saneamento e a preocupação de criar emprego local de forma a não produzir uma cidade dormitório que viesse a criar problemas de transporte e circulação, a construção de escolas e mesmo duma hospital de 100 camas.
Tratava-se, afinal, e apenas, de ideias e propostas dum espirito bem intencionado, que a história seguinte inviabilizou, quando uma terrível guerra civil veio acelerar tragicamente a tendência para a urbanização, e criar nas cidades Angolana, sobretudo em Luanda, uma réplica infinitamente bem maior do musseque urbano.
Finda a Guerra não houve governação que canalizasse a bonança dos fundos petrolíferos para retomar planos como o descrito, em que arquitetos , sociólogos e urbanistas fizessem estudos e apresentassem propostas centradas nas pessoas. O que se assistiu em matéria de construção, foram decisões de burocratas do circulo restrito do poder - sem muitas vezes o acompanhamento dos Ministérios da tutela - que , por endividamento do Estado, enveredaram nos arredores de Luanda e mais uma ou duas cidades, numa tipologia de construção em altura, “chave na mão” apropriada a outras longitudes, e cuja concepção e custos não tinham como alvo a população dos muceques, quanto muito, apesar de denominadas “centralidades”, não eram mais do que dormitórios periféricos para pessoas da classe média. O MUSSEQUE E A SAÚDE Não vou alongar-me sobre a contínua realidade do musseque, o alojamento impróprio partilhado por muitas pessoas aglomeradas em pequenos espaços que não beneficiam de água canalizada e de tratamento adequado de lixos e dejectos : todos sabemos que é esta pobreza que condiciona a eclosão das epidemias como a cólera, a poliomielite , a persistente prevalência da malária e em última análise a nossa grande mortalidade de menores de cinco anos. E que na presente contingência favorecem a propagação do COVIV-19.
A minha presente análise incide sobre como a topografia do musseque, sem urbanização, sem ruas delimitadas e sem casas numeradas torna quase inviável o controlo sanitário da população.
Em 2011, uma das iniciativas da cooperação Brasileira na era de Lula foi um importante projecto de apoio à organização dos nossos cuidados aos doentes de Anemia de Células Falciformes (ACF). Eu, outros médicos, enfermeiro e técnicos visitámos centros Brasileiros e inteirámo-nos do invejável esforço
Finda a Guerra não houve governação que canalizasse a bonança dos fundos petrolíferos para retomar planos como o descrito, em que arquitetos , sociólogos e urbanistas fizessem estudos e apresentassem propostas centradas nas pessoas clinico, tecnológico e organizacional do sistema Brasileiro. Vou focar-me na visita que fiz a Minas Gerais : é um estado que tem metade da superfície de Angola, mas uma população que era, na altura, próxima da nossa(20 milhões de habitantes). A despistagem neonatal da ACF (o teste do pezinho, que contemplava então mais 4 doenças) fazia-se nas maternidades do Estado, e todas as amostras eram canalizadas para a capital , Belo Horizonte, onde no Hospital Universitário eram processadas e os resultados enviados para o Centros de Saúde dos 800 municípios, que convocavam as crianças doentes e passavam a assisti-las.
E em Angola? Mercê do projecto apoiado pelo Chevron há cerca de 6 anos (e que há pouco terminou) fizeram-se colheitas em alguma maternidades de Luanda (e Cabinda). As amostras colhidas nas maternidades eram enviadas e processadas no Hospital Pediátrico ... mas depois havia um bloqueio: não era possível, no labirinto do musseque, localizar a morada da pessoa, nem tampouco havia um centro de Saúde que assegurasse uma ligação que, visivelmente, não existia, ente o Sistema de Saúde e a População. Tentou-se informar as famílias pela Rádio, sem grande sucesso, e acabou por recorrerse ao telefone móvel das mães. Perdem-se pelo menos 20% dos contactos. Não havendo Centro de Saúde funcionais, os doentes diagnosticados são obrigado a procurar o hospital Pediátrico para seguimento, ou dois ou três hospitais municipais que, entretanto, criaram consultas dedicadas à doença.
Esta falência de enquadramento sanitário da população nos seu domicílios e da execução de acções de Saúde à periferia são a rúbrica do nosso Sistema, que impede a execução de programas como o delineado para a ACF, inviabiliza ou limita as acções de Cuidados Primários de Saúde, e, na presente emergência pandémica. torna as operações de controlo da infecção e isolamento dos contactos um teatro para a população do asfalto, difundido para a opinião publica que vê televisão e participa nas redes sociais.
Um Sistema de Saúde que assuma a filosofia dos Cuidados Primários de Saúde de não esperar os progressos económico sociais para executar as medidas apropriadas, acessíveis e sustentáveis, não vai esperar que os musseques desapareçam: vai instalar um posto de Saúde para cada 10.000 habitantes, onde enfermeiros e auxiliares exercem tarefas precisas de contacto e cuidados de Saúde ( e, no actual contexto, de identificar doentes e contatos), vai criar um Centro de Saúde, já com médicos e parteiras por cada 100.000 habitantes, e um Hospital Municipal para 500.000.
Só assim podemos enquadrar a população, para a Saúde e para a doença, e, por maioria de razão, numa contingência epidémica suficientemente “democrática” para não atingir apenas os pobres, e que não será controlada sem os pobres serem também atendidos, o esforço não deve priorizar os(nas palavras de David Morley) os “palácios da doença”, cada vez mais, entre nós, imersos em atmosferas de negócios, mas na persistente, quase anónima construção dum Sistema de Saúde para o Povo Angolano.
Dedico este texto ao Dr. Daniel Matadi. 06.10.2920