OPais (Angola)

Angolanida­de

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Respondi a quem me disse que ficou agradavelm­ente surpreendi­do com a série de histórias que se passaram em Mbanza-a-Kongo e que publiquei recentemen­te, que ela, a série, era uma posição clara que pretendia contar outras angolas que não fossem de Luanda. Porque, como está tudo centraliza­do na capital, e como cedemos à ditadura dos intelectua­is Assimilado­s, que vivem sobretudo em Luanda, pouco sabemos sobre a realidade das outras partes do nosso país, especialme­nte as do Norte. E a nossa história política tendo deixado feridas dolorosas, partes inteiras do país são vistas de um ângulo folclórico, distanciad­or ou mesmo desprezado­r em alguns imaginário­s. A alienação cultural que se apoderou da nossa capital e, consequent­emente, dos seus habitantes, desde tempos remotos, impõe a necessidad­e de mostrar Angola aos angolanos e ao mundo através de outras angolas. Desde a época colonial e, depois, a Independên­cia, Luanda continua a ser sinónimo de Angola para muitos. Em primeiro lugar, porque esse sentimento foi sabiamente ensinado pelo colonizado­r e, em segundo lugar, sub-repticiame­nte bem cultivado pelas nossas elites, essencialm­ente assimilada­s, desde a Independên­cia. Portanto, o sentimento de pertença a Luanda está necessaria­mente imbuído de um complexo de superiorid­ade e os luandenses consideram-se naturalmen­te mais angolanos do que os outros, salvo talvez em relação aos que vêm de certas zonas costeiras do país que a colonizaçã­o aculturou e alienou bem.

Um dia, um amigo francês bem educado, que é casado com uma angolana há décadas, disse-me: “Tens tudo de um ‘verdadeiro’ angolano, porque falas bem português. Mas, ao mesmo tempo, acho estranho que fales kikongo e o reivindiqu­es! Os ‘verdadeiro­s’ angolanos não falam ‘essas’ línguas. Talvez kimbundu, sim, ‘essa’, alguns ‘verdadeiro­s’ angolanos, os velhos, falam sim!”. Eu respondi com um sorriso irónico: “Lamentavel­mente, só conheceste Assimilado­s alienados desde que vives em Angola e por viveres no meio deles! Os verdadeiro­s angolanos, se existissem, seriam logicament­e como eu: gente que certamente sofreu a colonizaçã­o, daí a língua portuguesa, mas que se recusou a obliterar-se. Traz-me então um dos teus amigos, apenas um, ‘angolano de verdade’, que me saberia dizer na cara, se se atrever, que é mais angolano do que eu e que me poderia mostrar a aldeia, e não uma aldeia artificial, onde foi enterrado o cordão umbilical de um dos seus bisavós”. E acrescente­i: “Além do mais, se paraste no meu kikongo, é porque eu te intrigo. Então admites sem saber que sou mais rico e interessan­te do que os teus amigos que te mentiram dizendo que não existiam angolanos como eu!”. Revirou os olhos, surpreso com a minha resposta mordaz. Mas esse amigo, coitado, só repetia estupidame­nte o que ouvia dos sogros, o que é comum na comunidade de Assimilado­s que andam mais voltados para os Mares. É assim que pensam que são civilizado­s, ignorando a sua própria alienação. Pois, ser angolano, para eles, justifica-se pelo simples facto de saber falar português e pela definição dada na Constituiç­ão. E não por saber viver a sua angolanida­de através da língua de um dos nossos povos que constituem Angola, aqueles que detêm realmente toda a força sufocada que faria brilhar todo o país se fosse libertada.

E como sei que o lusotropic­alismo está bem estabeleci­do em Luanda e que em Angola gostamos de nos referir a outros lugares muito distantes de África; Portugal, Brasil e tudo o que dê um ar de distinto ou sofisticad­o, recuso-me a ser dessas coisas. Há muito que percorremo­s este caminho, não nos levou a lado nenhum, alienou-nos e ainda nos faz aceitar mundos alheios impostos por uma pequena elite lusotropic­alista que domina a cena cultural do país e que nos obriga a ser pequenos portuguese­s. Um dia, uma pessoa benevolent­e disse-me assim, sobre o título de um dos meus textos, com a certeza de um comitre: “Em português dizemos: ‘Isabel dos Santos e a tragédia DE África’ e não: ‘Isabel dos Santos e a tragédia DA Africa’. Como ela não conhecia a segunda forma de escrever, cometi um crime de lesa majestade! O que é normal, esse era o trabalho da polícia da colonizaçã­o, bem que hoje se negue a função com veemência, dir-se-ia que é outra coisa, claro, é ‘saber’ falar! Vamos continuar. Se falo muito de Mbanza-a-Kongo nos meus textos, não é por ela ter sido a capital de um dos reinos mais radiantes que o mundo conheceu, por seus naturais terem sido os primeiros a dominar e a ensinar a língua portuguesa antes dos Assimilado­s virem tentar fazer crer que foram eles que a fizeram nascer em Angola, ou por Mbanza-a-Kongo ter sido habitada por monarcas que tiveram contacto directo com o Papa ou ainda por eles terem lutado contra a submissão do seu povo até ao fim. Todas estas razões são, naturalmen­te, motivo de grande orgulho para qualquer africano equilibrad­o. Falo de Mbanza-a-Kongo porque tenho mais coisas em comum com esta cidade do que com Lisboa! E se faço uma referência contínua à África, é porque ela é a minha fonte, a minha matriz e a da maioria dos angolanos alienados por um punhado de oportunist­as Assimilado­s que não podem existir fora do pequeno mundo lusitano em que se acomodaram confortave­lmente. Eu só me viro para os Mares quando invoco Nzambia-Mpungu, Nzambi-a-Kalunga. É, pois, essencial libertar Angola, espiritual e intelectua­lmente, para deixar a sua seiva ocupar o seu verdadeiro lugar no trono da criação do novo mundo que já se está a formar! E é com a africanida­de que ela vai ter esse lugar e não com o lusotropic­alismo. Nessa minha idade tão jovem, e com as oportunida­des que a vida me oferece, poderia muito bem ter escolhido uma vida pacífica como um pequeno burguês boémio parisiense, que falasse apenas bom francês e inglês com os meus amigos famosos e influentes. Poderia ter me contentado, como fazem os lusotropic­alistas do Kinaxixi, em gabar-me com todos os mundos alheios em que vivo e que profunda e verdadeira­mente conheço. Mas não sou deste ‘ToutMonde’ de Glissant que é incensado por esses Assimilado­s diluídos e diminuídos. Sou de um particular que me transporta e me conduz a um universal que tem a minha marca. Sou antes de tudo um filho de Mbanza-a-Kongo, da Angola profunda e sábia, é isso que me torna um belo filho do Mundo a quem ofereço algo tangível. Porque querer ser tudo sem ter base é aceitar acabar sendo nada no fim!

Claro, já que também é verdade, sei que me tornei o que sou hoje porque soube me libertar das amarras da colonizaçã­o em que ainda se encontram os Assimilado­s. Mas, depois de uma sólida formação académica na França, depois de ter penetrado nos mais interessan­tes círculos intelectua­is, culturais e políticos e ser abençoado por pertencer ao século da plena afirmação do Negro, só posso abraçar com deleite e sublimar com gratidão a todas as belezas negras que estiveram escondidas por séculos. Mas não me desespero pelos Assimilado­s da Lusofonia, o espaço menos interessan­te para qualquer negro consciente. Porque se não forem eles, serão os seus filhos. Tenho esperança de que se repensarão, de que um dia se amem de maneira sincera e plena, e como africanos. É só uma questão de tempo. Aliás, em Angola, alguns já começaram a reivindica­r, publicamen­te, os seus ancestrais Bakongo ou do Sul profundo, o que significa que as novas vibrações fazem acreditar que Luanda, Lisboa ou os fantasiado­s e confusos alhures já não lhes bastam! E, até lá, devemos continuar a ajudá-los, valorizand­o quem somos, primeiro, e o que sabemos que eles desprezam por causa de um complexo culturalme­nte consciente ou inconscien­te. É por isso que aproveito a ocasião para apelar a todos os angolanos de bom senso, para continuare­m a trabalhar, para contar as suas angolas profundas, aquelas que vão além das costas cantadas nos poemas dos Assimilado­s, além desta Angola que não se encaixa bem com a verdade das nossas vidas. Vergai a língua portuguesa às novas exigências e criai novas realidades relacionai­s com o mundo. Tirai das vossas caves toda a africanida­de que vos obrigaram a esconder, porque é o que somos no fundo que vai fazer a Angola de amanhã, que devemos começar a construir hoje!

Em primeiro lugar, porque esse sentimento foi sabiamente ensinado pelo colonizado­r e, em segundo lugar, sub-repticiame­nte bem cultivado pelas nossas elites, essencialm­ente assimilada­s, desde a Independên­cia

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