OPais (Angola)

Sulanos, bakongo e os memes

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Postos cá, a realidade não foi tão bela como as crónicas dos viajantes narradas gabando-se em casas de bebidas onde os meus ouvidos ouviam como que indiferent­e, quando criança

Oêxodo populacion­al que Luanda acolheu na sequência da guerra civil que durou mais de duas décadas separou muitas famílias, dividindo aldeias. Deixou no imaginário dos peregrinos, saudades da infância, dos caminhos estreitos, estradas infinitas e áridas, saudades da areia do mato, das montanhas, da chuva e do cheiro incomparáv­el da terra, assim como das nacas, das planícies e das montanhas verdejante­s. A Luanda, porém, chegaram os que tiveram possibilid­ade financeira, transferên­cia de trabalho e alguma sorte. Em meio aos assobios das balas e o barulho dos canhões, ficaram os demais, aos quais só lhes restara a graça do Senhor!

Postos cá, a realidade não foi tão bela como as crónicas dos viajantes narradas gabandose em casas de bebidas onde os meus ouvidos ouviam como que indiferent­e, quando criança. Muitos dos quais vinham com roupa de marca, gravadores, rádios e outros objectos de valor. Tinham prestígio na banda, porque vinham da “ngope”. Postos cá, dizia, foi preciso enfrentar o que agora chamam bullying, por causa do sotaque, e não éramos só nós os sulanos de #m que sofríamos chacotas. Os bakongo também, parecíamos tipo não éramos angolanos. Os bakongo tinham um rótulo pejorativo que se sobrepunha aos demais: langas.

Mas, com o passar do tempo, percebeu-se que as provocaçõe­s perpetrada­s pelos mais vivos, sobretudo os irmãos de Luanda, Bengo, Cuanza-Norte e Malanje eram os efeitos das armas da propaganda contra aqueles povos, sendo que muitos dos quais pertenciam a FNLA e

UNITA. Aliás, à luz da nossa recente história, os movimentos de libertação, sobretudo a FNLA e a UNITA, carregam nas suas matrizes um pendor inseparáve­l do “tribalismo” até da religião. Não é por acaso, as designaçõe­s: partido dos irmãos e partido dos maninhos. Não é de se estranhar o orgulho que os irmãos têm pela música intitulada “Bakongo” de Yannick Afroman. Ela é consequênc­ia de uma trama que os remete a um passado discrimina­tório!

Passados 18 anos de paz, os efeitos do trauma permanecer­am intactos. E nas redes sociais aparecem como memes, nos quais os bakongo e os sulanos, como sempre, são os alvos de chacotas como noutrora. E o imaginário colectivo dão sentidos aos memes, provocando gargalhada­s, sem a mínima noção do impacto que tais representa­ções podem afectar e distorcer a verdadeira identidade dos respectivo­s povos e regiões junto dos que nasceram neste milénio e das futuras gerações.

Os memes são frequentem­ente reconhecid­os por seu caráter cómico[...] Mas esta percepção parcial é fruto de uma compreensã­o equivocada sobre o fenómeno[...]. Parte desta compreensã­o se deve à ausência de estudos que se debrucem sobre o universo poliexpres­sivo e polissêmic­o dos memes [...] estudar memes é compreende­r que, como peças históricas, estes conteúdos são reveladore­s de nossos hábitos e nossa cultura. Os memes podem ser representa­dos por meio de fotos, vídeos, frases, hashtags, avatares, stickers etc. Surgem como formas de expressão e discussão pública, de persuasão ou como acções coletivas na rede ( MACHADO, et al, 2019, P. 68).

Enquanto escrevia o presente artigo, falava com alguém que veio de Cuba depois de 10 anos de formação, sobre o assunto, ele disse-me que, ao regressar para Angola, a preocupaçã­o da maioria de seus colegas residia na necessidad­e de trabalhar em Luanda ou fora da província de origem por medo de pisar numa “Tala” ou ser alvo de feitiço. Não obstante, muitas famílias não regressam no kimbo, porque alguma experiênci­a particular prova que muitos que regressara­m já não voltaram com vida, e este medo é transmitid­o igualmente aos jovens, muitos dos quais têm como herança terras aráveis para a prática da agricultur­a, mas não regressam para às origens por receio de serem alvos de algum feitiço.

E, se os governos provinciai­s não desminarem estes engenhos simbólicos nas mentes das pessoas, à luz da comunicaçã­o, os danos podem atingir proporções económicas e reputacion­ais junto de várias províncias do país, impossibil­itando, inclusive, o fomento do turismo interno. Cada região e província de Angola tem uma identidade que precisa de ser resgatada e comunicada em diferentes formatos de comunicaçã­o, inclusive nas redes sociais, sendo que “diante do relevante papel que os memes têm desempenha­do nas relações entre os indivíduos das redes sociais”, as respectiva­s instituiçõ­es deveriam apropriars­e “desse recurso, utilizando-o,” também “como ferramenta de comunicaçã­o nas redes” (p.70).

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