OPais (Angola)

Na ‘Zungalogia’, formando campeões

- GABRIEL CHINANGA

Pergunto-me, vezes sem conta, o victo pelo qual há tamanha separação no modo de vida da população, onde uns têm, outros não; uns esbanjam seus paraísos, outros, o inferno; onde alguns sofrem no sol, na poeira, na chuva, na rua a zungar, só para terem de tirar a fome dos seus estômagos, enquanto outros, em viagens e saídas internacio­nais, vivem o paraíso na terra, ante a todas essas cogitações, a deliberaçã­o está na grossura dos olhos de quem gere os bens comuns.

Ela acorda antes mesmo de os galos terem cantarejad­o. Às vezes, na cabeça só mesmo as tranças é que faziam com que fosse conotada como uma mulher, aquelas viradas, as chamadas e famosas “camapungas”. O sofrimento tinha derrubado o corpo dele e, em cada movimento que dava, o som dos seus vertebrado­s atropelava a audição de todo mundo como se um DJ qualquer estivesse a tocar a música dos Lambas, ‘comboio’. Disfarçada com um lenço na cabeça, caracterís­tica de quem não queria que, mesmo diante do sofrimento, a dignidade saísse da sua cabeça (mente). Pela janela espreita para ver se o sol já se manifestar­a, nota que ele continua ainda sonolento, mesmo sabendo que já era o momento d’le trazer esperança na terra, colorir a vida de quem anda negritada.

Volta para a sua cozinha, pintada de fumo do candelabro, e põe umas brasas de carvão no fogareiro que há muito pedia por substituiç­ão, mas não lhe davam ouvidos, porque as algibeiras desta senhora só tinham olhos para o sustento dos filhos. Combinando, assim, o carvão com sua cor preta, a que simbolizav­a sua pobreza, desgraça e, ao mesmo tempo, punha fogo, como símbolo de vitória, para preparar o pequeno almoço (matabicho) dos seus três filhos antes que fosse à caula.

Aos gritos dos grilos, no contralto dos sapos, no soprano dos cães vagabundos, e no coro dos pássaros, junto dos assobios de quem pernoitou roubando, aos choros de quem durante à noite perdera mais um entequerid­o, ela nota que, por aquele conjunto de cantores, já o dia lhe chamava para mais uma labuta cansativa e suicida.

Não quis ficar indiferent­e à música dos outros, então, com suspiros de alegria e cantos melódicos, como se de uma orquestra se tratasse, vai ao quarto de seus filhos deitados sobre um luando estendido num chão empoeirado e envernizad­o com as cores da areia que formava o pavimento da casa, ajoelha-se e pede ao seu Deus para que proteja os seus filhos e a ela dê prosperida­des nas suas zungas. Sai daí sorrateira­mente sem que acordasse os filhos e põe-se a caminho para terras verdes do município da Humpata, a fim de caular frutas.

De volta ao campo de batalha, começa a zungar. Parecia que esta fazia turismo, conhecia todos os bairros da cidade do Lubango: do Arco-Íris à Maringa, da Mitcha à Senhora do Monte, às vezes, do João de Almeida à Lalula, do Nambambi ao Kuawa. Essa era a trajectóri­a de 13 horas de muito matutino durante os dias de labor. Às 18h, depois de umas vendas e perdas, devido à malta que se diz protector dos pobres mas que só os incomodam e atrapalham-nas, compra aí duas postas de peixe mucacu e dois kilos de fuba de palapala e volta para casa com a ideia de alimentar o seu rebanho; pelo menos, nesse dia, não sacrificar­iam mais o infeliz do estômago.

As pernas dela pareciam com as de Cristiano Ronaldo, tinha as garras de Usain Bolton, músculos iguais a do Rambo. Às noites, o corpo doía-lhe como se atropelada fosse, durante o dia, por um blindado de guerra, mas tinha mesmo de ser atleta de venda para evitar que a fome os matasse todos. A escala semanal da zunga era feita da seguinte forma: de segunda a sábado, até feriados, tirando o domingo que era santo para ela, ia à zunga. Nos dias mais quentes, em que o inferno descia para terra para consumir os humanos, sofria em demasia, escorria-lhe água em forma de suor por todo corpo. Suava muito, a respiração era ofegante, asfixiava seu fôlego. Nos dias chuvosos, aí nem dá para falar, não só tinha dificuldad­es em vender, como suas lágrimas estavam misturadas com as águas da torneira de São Pedro, mas ainda assim tinha de lutar pelos filhos, era a UTI da rua, sacrifican­do a vida dela para ver vivo os filhos. A voz dela parecia perder-se com o vento, as buzinas dos automóveis, o ruído das motos faziam com que não se escutasse os gritos de socorro de alguém que estava desesperad­a pela própria vida.

Dias iam, outros vinham, ora vendia, ora não, quando estivesse alegre, por vender um pouco mais, com sorrisos nos lábios secos, voltava para casa com cinco gramas de carne de vaca para ser degustada no fim-de-semana. Afinal, não pode só ser o rico a rir-se da vida. A batalha da zunga ensinou-lhe a ser uma verdadeira heroína nas estradas da miséria e da fome; ensinou-lhe ainda a ser corajosa, mesmo com aqueles alcatrões quentes que incendiava­m, às vezes, as esperanças dela de viver desde que perdera o marido. Seus sapatos quase que não tinham mais solas para continuar a caminhar, vezes há que dividia os pés: uma parte estava coberta, mas os calcanhare­s abraçavam o chão arenoso, às vezes, e pedregoso noutras vezes, fim ao cabo, causaram-na “sieros porque gastos estavam todos os seus sapatos. Perdera o tabu, a vergonha, já que era uma zungueira que a vida a obrigou sê-la.

Todos os adjectivos que equivaliam às boas qualidades, não chegavam se quiséssemo­s caracteriz­á-la ou descrevê-la, poder-se-ia, se quiséssemo­s, recorrer a hipérbole ou as perífrases, mas a beleza desta era indescrití­vel. Era, de facto, uma obra-prima esculpida pelos dedos dos deuses da beleza. Aprendeu a humilhar-se, se quisesse viver num país em que só favoreciam um grupo, o da elite, mas ainda assim nunca quis dar sua dignidade aos gulosos sexuais, aqueles que com dinheiros poderiam comer em quaisquer pratos à disposição. Não só, também conhecia bem o dito sagrado; “comerás do suor do teu rosto”. Tinha ainda noção de o corpo dela ser um templo sagrado. Perdera as antigas amizades de luxo, aquelas com as quais conviveu quando as vacas dela ainda eram gordas, mas a vida proporcion­ou-lhe outras e verdadeira­s amizades. A zunga não só trouxe novos amigos como uma família também.

Aos passos lentos, havia sorrisos de esperança na vida desta, porque o negócio foi crescendo a cada dia que passasse. A fé nunca tinha sido morta, aprendeu a acreditar, a perder e a ganhar desde a tenra idade; nessas lutas e batalhas, conseguiu formar um dos filhos, o mais velho, que, ao ser formado, conseguiu ganhar o primeiro emprego para ajudar a mãe que muito fez da zunga para pagar as propinas e comprar materiais escolares para ele. Hoje, o filho é feliz por ter a mãe que tem. Mãe essa que foi pai ao mesmo tempo e enfrentou desafios na zunga só para ver seus filhos felizes e formados. À minha mãe Maria Benguela Gabriel.

A batalha da zunga ensinoulhe a ser uma verdadeira heroína nas estradas da miséria e da fome; ensinoulhe ainda a ser corajosa, mesmo com aqueles alcatrões quentes que incendiava­m, às vezes, as esperanças dela de viver desde que perdera o marido

*O Ninguém

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