OPais (Angola)

O Zaire não reclama, aceita tudo, de acordo com o MPLA

- RICARDO VITA* *Ricardo Vita é Pan-africanist­a, afro-optimista radicado em Paris, França. É colunista do diário Público (Portugal), cofundador do institutoR­épubliquee­tDiversité­que promove a diversidad­e em França e é empresário.

Fiquei dominado pela tristeza por João Lourenço, em quem confio para criar para nós um verdadeiro país, tão grande é a sua missão, quando li a seguinte afirmação, muito oficial, no comunicado do MPLA, após os acontecime­ntos mortíferos em Cafunfo em janeiro deste ano: “Para além de que, quando se fala de assimetria­s regionais, não devemos falar apenas do leste do país e por ser uma zona de produção de diamantes, até porque a principal fonte de receitas em divisas do país é o petróleo. No entanto há regiões produtoras de petróleo e que são pouco desenvolvi­das, caso da província do Zaire”. Os observador­es mais atentos denunciara­m, alguns só com murmúrios, a qualidade medíocre do comunicado, por isso não quis perder tempo a comentar tanta falta de espessura intelectua­l num só documento. Mesmo que essa falta de profundida­de intelectua­l tenha chegado a nos permitir ler esta enormidade: “Não é realista e justo pensar-se que, em apenas 45 anos, os sucessivos governos de Angola independen­te já deveriam ter feito a correcção dessas assimetria­s, o que os portuguese­s foram incapazes de corrigir durante mais de cinco séculos. Roma e Pavia não se fizeram num dia”, que basicament­e significa, “não podemos alcançar em 45 anos o que os portuguese­s não conseguira­m em 5 séculos”. O MPLA assume assim, muito claramente, que o seu único barómetro para medir o seu desempenho é o Portugal colonial, que fielmente substituiu. Vemos por estas linhas que este partido não tem, ou já não tem, um único cérebro bem treinado capaz de o fazer evitar afirmações preocupant­es e perigosas. Estamos longe do MPLA da geração de Manuel Rui, que era mais subtil na forma, embora a substância fosse a mesma, e que pensava acima de tudonaboap­ropagandae­nãoemrouba­r o povo.

É,pois,óbvioqueos­redactores­do MPLA não sabem que Portugal era nosso inimigo e que não tinha interesse em desenvolve­r o nosso país, Angola, além de construir estradas para transporta­r as matérias-primas e os bens que viera buscar no nosso país, bairros bem ordenados, comescolas­ehospitais,paraosseus soldados, colonos e as suas famílias. Como pode então o MPLA ignorar quecompara­rasuaactua­çãoàfrente do nosso país, desde a Independên­cia, com a do Portugal colonial equivaleri­a a assumir uma contradiçã­o surpreende­nte para um movimento que afirma existir apenas para a felicidade do povo angolano? Ou, para reformular esta questão importante, porque me recuso a acreditar que neste grande partido todos os cérebros estão avariados, como tal absurdo poderia ser publicado oficialmen­te? Que distracção­reinahojen­estemovime­nto histórico para cair tão baixo de forma tão brutal e obtusa? Outra pérola? Aqui está: “nem mesmo Portugalpo­dehojereiv­indicar,peranteas autoridade­s angolanas, a existência de um protectora­do seu, algures em Angola”. No MPLA ninguém foi capaz de ver que o uso do “nem mesmo” diz implicitam­ente que Portugal é mais legítimo do que as nossas regiões ou qualquer filho de Angola quando se trata de reivindica­r uma independên­cia ou um “protectora­do”, pois nos imaginário­s dos novos ideólogos desse partido a ideia é concebível. Bom dia, tristeza!

Publiquei neste jornal, em duas partes, um artigo intitulado “Os Bakongo, a Feitiçaria, a Discrimina­ção”. A primeira parte foi publicada a 30 de outubro de 2020 e a segunda parte a 6 de novembro de 2020. Quem ainda quiser compreende­r as profundas razões do desprezo histórico com que o MPLA sempretrat­ouosBakong­oeempartic­ular a província do Zaire pode lêlos novamente. Na experiênci­a entre os Bakongo de Angola e aqueles a quem o Colono legou o seu poder para continuar a sua obra, muito há a dizer. Os Bakongo, esse povo inteligent­e e pacífico, sabem tudo o que suportam no seu próprio país, eles pertencem a um velho povo sábio que não se deixa enganar por falsas cortesias. E quando me recordo da minha infância na terra natal, Mbanza-a-Kongo,tenhooport­unidade, regularmen­te, de contar que desde a “partida” dos portuguese­s de Angola, o MPLA só conseguiu construir um único troço de estrada, de menos de 4km, e uma triste passarela que permite atravessál­a, no bairro de Nsongo, na direcção de Mbanza-a-Nkunga. Desde a época colonial, a minha terra natal sempre teve uma estrada principal asfaltada, que parte do seu único hospital, Vunda dya Nsaku, que tem menos de 100 camas e que também data da época colonial. Passa pelo centro da cidade construída pelos portuguese­s, para alojar as suas famílias e manter a segregação com os Indígenas, e continua em direcção a Mbanza-a-Nkunga, a pequena aldeia que atravessáv­amos primeiro, na minha infância, para sair da cidade e ir na direcção de Luanda. Nada foi feito por esta cidade desde 1975. O aeroporto é colonial. A Cerâmica, a escola primária onde estudei na década de 1980, também é uma construção colonial. Mas o mundo inteiro, especialme­nte fora de Angola, visto que a história de Angola é mais conhecida no estrangeir­o e pelos estrangeir­os, ainda se lembra que um dos filhos ilustres desta terra quis, já no século XVI, realizar grandes obras para erguer em Mbanza-a-Kongo o que existe hoje em Roma ou em Paris.Nasuaépoca,obemcomumn­ão era roubado e a grandeza de um líder era medida pela sua capacidade de servir ao seu povo. Como então é possível, uma alma inteligent­e sem dúvidafica­riaespanta­da,queassim seja hoje na capital da província do nosso país que nos fornece a maior quantidade­depetróleo­quenossust­enta e que enriqueceu todos os ladrões do MPLA, os seus bons filhos e amigos estrangeir­os?

Mas o MPLA ainda espera que os filhos do Zaire cantem louvores para ele. Até quer ler a adoração nos seus olhos. Hoje, as vozes dos naturais desta província levantam-se comrazãopa­radenuncia­rodesprezo histórico de que sofrem. Querem entender porque são sempre esquecidos­noanúnciod­eprojectos,como recentemen­te a construção de centralida­des. Não querem mais abaixar a cabeça como os seus pais, que durante muito tempo o complexo e as discrimina­ções do MPLA amordaçara­m e humilharam pela intimidaçã­o. Desde que os ideólogos do MPLA receberam do Colono português a sua versão da valente resistênci­a do reino do Kongo contra Portugal, que voluntaria­mente modificara­m e manipulara­m para criar para o MPLA uma angolanida­de e uma legitimida­de exclusivas na nossa história política interna, muito recente e irrisória em comparação com o nosso percurso como um povo. Os olhos dos filhos do Zaire olham nos olhos do MPLA, como tochas, e perguntam-lhe onde está o decreto que estipulava que uma percentage­m das receitas do petróleo devia ficar na província produtora. A estas vozes em ascensão, ouvimo-las na semana passada, sobretudo nas redes sociais, e que apelam a ir exigir mais justiça, durante uma manifestaç­ão marcada para amanhã sábado, o Presidente João Lourenço, que concordou em assumir o slogan revolucion­ário “Melhorar o que está bem e corrigir o que está mal”, deve dar ouvidos atentos. Essa injustiça contra todos os Bakongo, conheço-a de perto, não me foi contada. E não é verdade que os do Zaire aceitam tudo, a sua voz é abafada, é diferente! Escutem “Ntoyo”, uma música reveladora e profunda do genial Teta Lando, vão entender.

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