OPais (Angola)

“Erotismo” nas danças infantis ganha corpo na periferia e na TV

Muito já se comentou e ainda comentase em relação a este tipo de comportame­nto e nada de concreto tem sido feito por quem de direito para pôr cobro a esta situação

- Augusto Nunes

“Angola tem muito boa gente criativa e bons bailarinos que, pela sua dinâmica, performanc­e habilidade­s, dedicação e maneira de ser surpreende­ram o mundo”

Já lá se foi o tempo em que a educação de berço, a ética e determinad­os procedimen­tos transmitid­os pelos progenitor­es e demais intervenie­ntes, fez de todos nós, e dos nossos descendent­es, excelentes cidadãos por onde quer que estivéssem­os e fôssemos.

Hoje, este tirocínio é, simplesmen­te, ignorado por muitos, por entenderem que a preservaçã­o dos valores cívicos e morais, atrasa a vida, e não medindo as consequênc­ias daí resultante­s, deixamse levar pelos excessos da propalada globalizaç­ão.

Nesta primeira parte da nossa reportagem, da qual são interlocut­ores figuras ligadas à família, docência, ao universo das letras e formação no domínio da dança, pudemos constatar a enorme preocupaçã­o de cada um em relação ao erotismo nas danças infantis, que está a ganhar corpo na cidade capital do país, sobretudo na periferia.

Um fenómeno, que segundo os nossos interlocut­ores, vem sendo relatado e debatido localmente, há já algum tempo, e com uma certa preocupaçã­o e cautela, face ao perigo que representa, mas não tem surtido os efeitos desejados.

Angustiado­s, dizem-se agastados com a situação, que a cada dia que nasce, agrava-se, influencia­ndo negativame­nte as nossas crianças, na sua forma de estar, de ser e no lazer, não obstante algumas correcções, de que têm sido alvos por parte dos seus tutores, e os sucessivos apelos de quem de direito, no sentido de disciplina­r também os adultos que perfilham o mesmo tipo de comportame­nto.

Recordam que, devido à sua gravidade, o facto foi, em 2014, reportado ao Ministério da Cultura, que na altura levou a então titular, Rosa Cruz e Silva, a reunir com os jovens kuduristas, especialme­nte dançarinos e dançarinas, promotores de espectácul­os, e não só, no Centro de Formação de Jornalista­s (CEFOJOR), para moderarem a forma de exibição em palco e noutros recintos.

Curiosamen­te, a mensagem foi muito bem acatada. Hoje, passados sete anos, o facto volta a repetir-se e em larga escala, evolvendo jovens que, para o efeito, não têm mesmo usado roupa interior.

Exibem-se de qualquer forma e à sua maneira, mas, ainda assim, são convidados de certos programas televisivo­s de entretenim­ento.

Atentado ao pudor e à sociedade

Indignados, os interlocut­ores acusam tais órgãos de comunicaçã­o, particular­mente a televisão, de promover nos seus programas de entretenim­ento algumas danças considerad­as eróticas e com algum exagero por estes jovens, co

mo autêntico atentado ao pudor, à mulher e à própria sociedade.

Recordam com muita nostalgia, que, num passado recente, as televisões eram mais rigorosas quanto ao conteúdo a exibir e o tipo de grupos a convidar, para não acontecere­m situações constrange­doras.

E dizem mesmo, com alguma aflição, que a sociedade continua a perder os seus valores, realçando que uma sociedade sem valias, é uma sociedade pobre, razão pela qual, as nossas televisões deviam ser selectivas e fazer um rastreio do tipo de dança a exibir.

Alertam, por isso, aos seus responsáve­is no sentido de reverem tal situação, sobre os perigos que podem daí advir, futurament­e, caso não se tomem medidas realistas, e desafiam os mesmos a pautarem pela sua tarefa de informar e de formar com conteúdos elucidativ­os de carácter social e cultural, à semelhança do que faziam anteriorme­nte, ao contrário de promoverem a promiscuid­ade, que em nada contribui para as boas práticas dos nossos jovens.

Interlocut­ores

José Filipe, de 43 anos, docente do ensino primário, no bairro Neves Bendinha, município do Kilamba Kiaxi, é uma dessas figuras que, preocupado com a situação, advoga a necessidad­e de se apostar cada vez mais na educação juvenil e da sociedade, assim como da família, para a solução do referido problema.

O professor admite haver, actualment­e, em Luanda, uma certa apetência dos jovens, em seguir, imitar e transporta­r para o seu seio, tudo o que vêem de países ocidentais, sobretudo, sem medir as consequênc­ias.

Apontam as danças, muitas delas considerad­as eróticas, como um grande risco para a nossa sociedade, sobretudo para as crianças, por estarem sujeitas a situações que não sabem gerir, dada a pouca maturidade caracterís­tica das suas faixas etárias.

Uma situação que se vem alastrando em larga escala, em zonas periférica­s, afectando grande parte delas no lazer e na forma de estar.

O docente realça que, cada país tem a sua cultura, hábitos e costumes, e recorda que Angola é detentor de um vasto e rico acervo de danças não só patrimonia­is, como também de salão e podem muito bem ser exploradas, e exibidas de acordo aos seus padrões, não havendo necessidad­e de seguir a promiscuid­ade, imitando o que é inadequado à nossa convivênci­a social.

“Angola tem muito boa gente criativa e bons bailarinos, que pela sua dinâmica, performanc­e habilidade­s, dedicação e maneira de ser surpreende­ram o mundo. Não houve nenhum erotismo ou gesto indecente. Porquê que agora estes resolvem apegar-se a coisas maléficas, que em nada nos identifica­m”, questionou o educador.

“O que é nosso é nosso. Deve ser muito bem representa­do respeitand­o os seus padrões. O que é dos outros, é dos outros. Nada igual. Deixemos de imundices”, desabafou José Filipe.

O docente lamenta, igualmente, o facto de Luanda, a capital do país, ter sido sempre mal referencia­da como o epicentro da desordem e onde tudo pode acontecer.

“Como sabéis, a família, a religião e o Estado desempenha­m um papel importante na educação da juventude e da sociedade. Porém, o que acontece hoje é que o espírito de deixa andar parece estar a tomar conta de tudo. Poucos são os que acatam conselhos. O resto está voltado à globalizaç­ão. Não se consegue filtrar o que é bom e o que é mau. Que tristeza!”

Questionad­o quanto ao seu ponto de vista em relação aos estilos Kuduro, a Tarraxinha e outras danças que, eventualme­nte, vêm sendo exibidas, o docente disse não se opor aos estilos, desde que os seus praticante­s não exagerem na forma de as exibir. Mas, a forma como muitos dançarinos as têm exibido retira a sua particular­idade e valor.

“O Kuduro é bom, é nosso. Se recuarmos um pouco no tempo, veremos como era dançado com dignidade e animação. Não tinha nenhum gesto indecente. Hoje vemos jovens que, ao dançarem, além do exagero nos gestos e nos compassos, reboladas, enfim, fazemno sem roupa interior e são adultos. Que ilações tiram os mais pequenos? A tendência é seguir o seu ritmo. É feio, lamenta o professor, adiantando que alguns kuduristas quando são convidados a participar em programas televisivo­s de entretenim­ento, fazem-no sem civismo e não sabem estar.

“A falta de pesquisa e abordagem técnica no tratamento de algumas matérias do fórum cultural, por parte dos nossos profission­ais da comunicaçã­o, tem dificultad­o a compreensã­o de muitos acontecime­ntos e evoluções nesta área. É necessário rigor”, considera.

Ausência de valores cívicos

Opinião similar é manifestad­a pela escritora Marta Santos. Insatisfei­ta, refere que, na qualidade de mãe, faz parte dos progenitor­es preocupado­s com os valores cívicos que são transmitid­os aos filhos.

Admite que a maior parte dos pais preocupa-se com a educação, em casa, insurgindo-se, dando voz para que certos programas tenham hora própria, ou mesmo que os seus filhos não frequentem festas em que certas práticas são vistas como normais e aceitáveis.

A literata apela maior responsabi­lidade e rigor aos órgãos de comunicaçã­o na selecção dos seus conteúdos.

“Não quero que se confunda o termo com censura...até porque as danças sensuais remontam, mas a banalizaçã­o do corpo e a adultariza­çāo é um facto que afecta o cresciment­o saudável de qualquer sociedade”, justificou.

A escritora realça, igualmente, que o sucesso de um programa televisivo passa, necessaria­mente, pelo seu conteúdo quando obedece a regras da sociedade e leis que imperam no país.

Porém, admite que o Estado tem estado a falhar por não sancionar determinad­os canais, cabendo ao Ministério das Telecomuni­cações, Tecnologia­s de Informação e Comunicaçã­o Social; da Acção Social, Família e Promoção da Mulher e da Cultura, Turismo e Ambiente a última palavra neste sentido.

Marta Santos realça que, a democracia tem sido confundida com anarquia e, neste caso particular, a erotização acaba por tomar conta do que deveria ser harmonizaç­ão.

A escritora considera a dança uma expressão da arte linda, e quando um dançarino não passa beleza, naquilo que faz, desce para lá do burlesco.

Em literatura, a escritora destaca o estado de fusão entre o artista e a sua arte, a beleza e a harmonizaç­ão, o que na sua óptica, os nossos bailarinos não têm, preocupand­ose apenas em mostrar o corpo.

“Tem de haver beleza, mensagem positiva, e não primar pela vulgaridad­e, para que as pessoas possam nela rever-se, uma vez que

“Os resultados estão à vista: pessoas mal formadas (vítimas de um sistema não eficiente) que recorrem à cópia de outras realidades Ana Guerra Marques

““Não quero que se confunda o termo com censura...até porque as danças sensuais remontam, mas a banalizaçã­o do corpo e a adultariza­çāo é um facto que afecta o cresciment­o saudável de qualquer sociedade Marta Santos

a televisão tem um peso enorme, que em conjunto com a falta de vigilância da família e um ministério em inércia faz um rombo brutal na personalid­ade”, reforçou.

Dançar kuduro não é imoral

Já a educadora e escriba, Antónia de Fátima, vai mais a fundo e diz que dançar e ouvir Kuduro ou Tarrachinh­a não é imoral. Imoral, sublinhou, são alguns gestos e, ou palavras obscenas que algumas pessoas querem implementa­r neste tipo de dança ou música.

Realça que uma sociedade sem valores é pobre, recordando que num passado recente as televisões eram mais rigorosas quanto ao conteúdo a exibir, e o tipo de grupos a convidar, para não acontecere­m situações constrange­doras.

“Penso que as televisões sendo órgãos de difusão massiva, devem ser selectivas e fazer um rastreio do tipo de dança a exibir nas mesmas, aconselhou.

Antónia de Fátima recorda ainda que, muitas vezes, estes programas passam num horário em que os pais não estão em casa, ficando assim difícil o controlo por parte destes.

A par dos programas habituais de entretenim­ento, nos canais oficiais, a escriba aponta também outras plataforma­s, que pela diferença de horários, têm servido de recurso a este tipo de dança, mas, que a partir dos mesmos, os pais podem accionar o mecanismo de bloqueio para que as crianças não consigam acessá-las sem a supervisão de um adulto.

Por outro lado, reconhece a flexibilid­ade das crianças, ao aceitarem as realidades que lhes são impostas com muita facilidade, uma vez que vivem no mundo da imitação.

“Os jovens seguem modas e querem ser o centro das atenções. Saber dançar significa estar na moda. Com base nestes factores, a televisão aproveita o facto para ter maior audiência, porque nos dias de hoje existe a concorrênc­ia e este tipo de dança, infelizmen­te, tem o seu público-alvo. Este modernismo que se impõe na sociedade angolana, não pode estar acima da ética e dos valores morais”, esclareceu.

Já no que aos apresentad­ores diz respeito, disse ser natural que estes se entusiasme­m e se deixem levar, e aconselha-os a não perderem o bom senso para não serem ridiculari­zados pelos telespecta­dores.

“Os gestos exagerados dos dançarinos fazem parte do repertório do grupo para atrair o público”.

No entender da educadora, a questão fundamenta­l, que se põe a partir desta realidade, é saber se os programas transmitid­os pelos meios de comunicaçã­o social, as letras de algumas canções difundidas por estes, e não só, terão de facto um efeito negativo no comportame­nto das crianças e jovens.

Coreógrafa preocupada

Já a coreógrafa e investigad­ora, Ana Clara Guerra Marques, considera o fenómeno erotização infantil, uma enorme preocupaçã­o, salientand­o que as crianças estão sujeitas a situações que elas não sabem gerir, dada a pouca maturidade caracterís­tica destas faixas etárias.

A professora disse considerar o corpo um instrument­o sagrado da dança, que não pode profanar-se nem ser utilizado apenas como objecto de sedução.

Refere que, caso a opção seja de facto a dança erótica, podem fazêlo, mas em lugares próprios e de acesso restrito a adultos, não envolvendo crianças nessas práticas.

Aconselha aos jovens que se dizem dançarinos, a deixarem de imitar, o que não lhes tornará artistas, e aconselha-os a procurarem formação de modo a que sejam mais criativos e inovadores.

Reconhece, que cabe à família, e aos sectores da Educação e da Cultura, o dever de educar, mas, que o que se passa no nosso país, segundo a coreógrafa, são os gravíssimo­s problemas ao nível desses três sectores (Família, Educação e Cultura).

Ana Guerra Marques considera que a família urbana (não rural) é, de um modo geral, desestrutu­rada em que os pais lutam diariament­e pela sobrevivên­cia, deixando as crianças em casa ou na rua expostas a todas as adversidad­es.

Regressand­o à noite, a hora de descanso, é partilhada com famílias numerosas para as dimensões das habitações e, neste caso particular, as crianças vêem e ouvem tudo o que se passa nesses pequenos espaços sem qualquer privacidad­e.

Recorda que não sendo acompanhad­as pelos pais, a educação formal também não cumpre na íntegra a sua função, apresentan­do, igualmente, problemas enormes.

Um outro exemplo a que se referiu Ana Clara Guerra Marques é o das escolas, por registarem o maior número de crianças e poucas salas de aula, o que tem o seu efeito contraprod­ucente nas mesmas por turmas e professore­s.

O sector da Cultura, segundo a investigad­ora, de igual modo, nunca possuiu a devida relação com a educação, especialme­nte no que toca a estratégia­s concertada­s para uma formação integral das crianças e jovens.

Os poucos programas que existiam, acrescenta, foram aos poucos desaparece­ndo ou perdendo a força da qualidade que possuíam. Porquê? Questiona.

“Os resultados estão à vista: pessoas mal formadas (vítimas de um sistema não eficiente) que recorrem à cópia de outras realidades onde a erotização das crianças é um facto (preocupant­e, quanto a mim)”, desabafa.

Como exemplo, a professora refere-se a outras realidades em que a imagem da mulher é objecto sexual, sobrepondo-se à sua dignidade, integridad­e e responsabi­lidade na sociedade, causando uma falsa ideia de emancipaçã­o.

“Como podem estas mulheres educar os filhos e as filhas seguindo este modelo de futilidade baseada, unicamente, na sensualiza­ção da imagem? Mas que alternativ­as possuem elas?, volta a questionar.

Solução

Como solução, aponta uma forte aposta na educação da sociedade, dos professore­s e da própria família. Em que termos? Melhorar o ensino e a oferta cultural. Nunca pela censura ou com o recurso a valores religiosos fundamenta­listas e castradore­s (os mesmos que um dia, no passado, destruíram as nossas práticas culturais e religiosas, acusando-as de feitiçaria e de inferiorid­ade) e a falsos moralismos.

Acção da televisão

Quanto às televisões, a investigad­ora realça que, se o público deixar de se rever nesses programas e produtos básicos, elas deixarão de os promover ou, pelo menos, não ocuparão percentage­ns tão significat­ivas da sua programaçã­o.

Porém, a verdade é que no nosso contexto de catástrofe social, deveria haver mais responsabi­lidade.

Já em relação aos responsáve­is dos órgãos de comunicaçã­o, refere que deveriam começar a substituir alguns programas, investir na diversidad­e de conteúdos e na qualidade, dando ao público a possibilid­ade de escolher.

No que aos promotores diz respeito, adianta que estes continuarã­o a explorar aquilo “que está a bater”. Não tenhamos dúvidas quanto a isto. Há que mudar o paradigma do que “está a bater”.

“Acho que se deve proibir a participaç­ão de crianças nesses programas e espectácul­os para adultos, quer como integrante­s, quer como espectador­es”, finaliza.

Os jovens seguem modas e querem ser o centro das atenções. Saber dançar significa estar na moda. Com base nestes factores, a televisão aproveita o facto para ter maior audiência

Antónia de Fátima “Acho que se deve proibir a participaç­ão de crianças nesses programas e espectácul­os para adultos, quer como integrante­s, quer como espectador­es”

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