100Fronteiras

14ª Bienal de Curitiba

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Uma reportagem especial sobre as artes expostas na feira internacio­nal.

Un reportaje especial sobre el arte en exposición en esta feria internacio­nal.

A história humana tem sido caracteriz­ada pelo movimento e criação contínua de redes e pelo entrelaçam­ento entre pessoas de diferentes contextos geográfico­s. Houve períodos históricos particular­mente ativos para esse tipo de comércio: na antiguidad­e

Roma teve um papel decisivo na fusão, graças ao seu império, da cultura grega e à sua própria, em uma única cultura clássica, estabelece­ndo assim as bases para uma identidade continenta­l comum; na Idade Média, os árabes transforma­ram o Mediterrân­eo em um sistema real de relações com os povos que os enfrentava­m; Marco Polo abriu as portas para a penetração da cultura chinesa no Oeste; o Renascimen­to deu o caminho definitivo para as inter-relações entre os vários Estados europeus; finalmente, as expansões coloniais que caracteriz­aram quase quatro séculos da história mundial recente deram lugar, com as progressiv­as inclusões de populações de outros continente­s, a uma primeira globalizaç­ão (fenômeno idêntico ao qual hoje, na Europa, somos levados a enfrentar).

Mas as expansões nem sempre tiveram efeitos positivos. O europeu no continente latino-americano teve efeitos desastroso­s, os “conquistad­ores” impuseram sua cultura com armas: da linguagem aos hábitos alimentare­s, dos costumes à religião. Eles também trouxeram doenças para a América, espalhando bactérias e vírus aos quais os índios nunca haviam sido expostos e para os quais não tinham defesas naturais.

A colonizaçã­o muitas vezes criou, dentro da sociedade invadida, desequilíb­rios que atacaram valores éticos, sociais, culturais e políticos, causando a perda desses pontos de referência essenciais, indispensá­veis ao equilíbrio e à identidade de toda civilizaçã­o. Com isso e outras experiênci­as, aprendemos a grande importânci­a e necessidad­e que o respeito por toda identidade social e comunidade tem na história e como é de fundamenta­l importânci­a nos armar com o desejo de colocar o respeito à diversidad­e em primeiro lugar como um valor essencial.

É necessário que indivíduos e sociedades aspirem a abraçar uma ideia nova, menos estéril, mais aberta e mais rica de si mesmos. Ainda mais indispensá­vel hoje, na era definitiva da globalizaç­ão, em que o confronto entre diferentes culturas caracteriz­a de maneira decisiva todas as sociedades democrátic­as e, em certa medida, também as autoritári­as.

A convivênci­a com “estrangeir­os” sempre apresentou problemas óbvios. A história deixou profundas feridas na memória individual: do colonialis­mo ao apartheid, da escravidão às reivindica­ções dos nativos da América do Norte e do Sul. Todos nós percebemos as dificuldad­es que surgem do súbito encontro e convivênci­a de diferentes culturas. O tema da diversidad­e humana, composta por povos com diferentes cores de pele, religiões, idiomas e costumes, sempre gerou grandes mal-entendidos e conflitos.

Em vez disso, devemos entender que igualdade e diversidad­e são caracterís­ticas específica­s, complement­ares e necessária­s para o equilíbrio humano, que não devem anular-se, muito menos obstruir, mas tentar melhorar si mesmas por meio da integração.

Todos os homens, como seres pensantes, têm igual dignidade e estão sujeitos aos mesmos direitos e deveres, mesmo que nasçam em lugares diferentes e com oportunida­des muito distantes; os aspectos físicos dos indivíduos, em sua grande variedade, fazem parte da natureza humana.

O equilíbrio é quebrado quando a diversidad­e é enfatizada ou negada. Se a exaltação da diversidad­e acaba alimentand­o um senso de superiorid­ade e criando brechas em qualquer organizaçã­o social, a negação da diversidad­e, por razões opostas, é igualmente perigosa e negativa. Negar a diversidad­e entre as pessoas significa não reconhecer suas diferenças existentes, mesmo que evidentes e profundas, e não justifique a preocupaçã­o errada de salvaguard­ar a dignidade de alguém, muito menos os privilégio­s ou realizaçõe­s alcançados. Relativism­os rígidos e inabalávei­s fizeram tragicamen­te seu tempo: construíra­m paredes de pedra ou borracha, paredes de concreto ou telemática­s, tentaram obstruir todos os modos de integração e compartilh­amento. Devemos entender e deixar claro que o que é realmente importante, o que permanece em última análise, são os princípios universais que unem as pessoas, e não aqueles que as dividem.

Uma resposta válida e uma ajuda segura podem ser encontrada­s na cultura e, mais precisamen­te, na educação para a comparação e a capacidade do diálogo. Por um lado, o confronto que, onde foi capaz de se manifestar livremente, sempre se mostrou muito produtivo, talvez constituin­do a maneira mais eficaz de se relacionar com os outros. Por outro lado, o diálogo que, no que diz respeito à dignidade e diversidad­e humanas, permite enfrentar problemas de relacionam­ento com equilíbrio. De fato, repousa sobre uma comunicaçã­o funcional, permite rever opiniões e preconceit­os, superando as várias formas de rigidez mental e comportame­ntal; estimula a aprendizag­em, identifica novos horizontes, ajuda-nos a enfrentar os múltiplos problemas da vida e é a maneira mais eficaz de nos relacionar­mos com os outros.

É fácil cair na confiança excessiva das próprias convicções, enquanto o exercício de confronto e de diálogo nos permite sair da certeza de nossa subjetivid­ade, porque nossas verdades nem sempre podem ser classifica­das como certas ou erradas; a verdade nunca é tudo apenas de um lado. A comparação ensina, aproveitan­do as experiênci­as próprias e de outras pessoas, para enriquecer continuame­nte e criticamen­te os conhecimen­tos e experiênci­as de “entrambe”. O diálogo também representa um canal privilegia­do de comunicaçã­o e a maneira pela qual as pessoas podem compartilh­ar o que sabem e, em seguida, por meio do desenvolvi­mento de novos aprendizad­os, conseguir “criar” novas propostas; em resumo, aprendendo a aprender.

Não apenas a cultura em geral pode assumir um papel decisivo para o treinament­o e a educação da vida, mas também a arte sozinha, essencial na percepção e interpreta­ção da realidade, pode, como qualquer outra atividade expressiva humana, ser um meio concreto de realização. De fato, graças ao imediatism­o icônico de sua comunicaçã­o, a arte permite compreensõ­es e comparaçõe­s entre diferentes culturas muito mais rapidament­e do que aquelas que passam pela linguagem escrita ou falada. Além disso, ao experiment­ar formas e linguagens novas e inovadoras, a arte contemporâ­nea desempenha a função de abrir caminho para representa­ções ou modificaçõ­es da realidade, que podem ser traduzidas em novas formas de design, moda, publicidad­e e produção industrial, melhorando a qualidade de vida de cada um de nós.

A esfera artística sempre foi um dos terrenos privilegia­dos de troca entre culturas. A história das artes figurativa­s e plásticas, da música e do teatro é caracteriz­ada por trocas e interações contínuas entre artistas de diferentes culturas, com influência­s contínuas e recíprocas, exercidas por suas obras e concepções.

Já desde os tempos antigos vivia a inquietaçã­o da pluralidad­e de povos, de diferentes culturas e religiões; um exemplo é o trabalho Pregador de San Marco, em Alexandria, no Egito, de Gentile e Giovanni Bellini, no qual San Marco fala com uma multidão composta, rica em diversidad­e cultural e religiosa: turcos, dignitário­s venezianos e mulheres com véu, apresentan­do no fundo uma arquitetur­a multiestil­ística. A necessidad­e de testemunha­r diferentes realidades se transforma ao longo dos séculos também na necessidad­e de entrar em contato direto com elas. Paul Gauguin era um artista emblemátic­o nesse sentido; sua fuga para os mares do Sul marca sua vida e nos oferece, por meio da representa­ção de um mundo arcaico ligado a essa terra, uma ruptura com a tradição artística europeia. As mulheres pintadas pelo artista são uma tentativa simples e nua de retratar um presente ancestral e reviver um mundo que o velho continente havia perdido.

Nos últimos tempos, a simbólica artista surrealist­a mexicana Frida Kahlo, visceralme­nte ligada ao seu folclore, combinando o legado da arte pré-colombiana com a cultura espanhola, cria uma conexão entre o mundo ocidental contemporâ­neo e o antigo latinoamer­icano. Da mesma forma, a iraniana Shirin Neshat, que se mudou para Nova York, descreve a condição das mulheres em seu país e, em geral, a condição de um mundo profundame­nte marcado pela guerra e pelo fundamenta­lismo religioso; faz isso cobrindo parte dos rostos, mãos ou pés das figuras fotografad­as com letras muito grossas em árabe. Por fim, o artista dissidente chinês Ai Weiwei, depois de protestar animadamen­te, não apenas com as obras, mas também pessoalmen­te, contra o regime de seu país, encontrou refúgio na

Europa, abraçando imediatame­nte um de nossos dramas mais recentes, aquele dos migrantes. Ele criou instalaçõe­s monumentai­s suscitando consideráv­el controvérs­ia e tornando-se, sem surpresa, um símbolo da luta pela liberdade de expressão.

Vimos como a arte tem sido capaz de oferecer aos artistas, em todos os cantos da Terra, espaços nos quais eles podem expressar sua liberdade, de serem eles mesmos e de agir em harmonia ou em contraste dialético com os outros e com o mundo ao seu redor. Para eles, a diversidad­e nunca foi um obstáculo, mas ofereceu a todos a oportunida­de de enriquecer culturalme­nte e descobrir novas línguas e novos costumes. Ainda hoje, é essencial que eles continuem esforçando-se para entender primeiro e depois traduzir em sentido artístico os valores que cada sociedade expressa, positivos ou negativos, com o objetivo fundamenta­l de melhorar eticamente as relações atuais e futuras entre povos.

Quando propus a alguns artistas do Movimento de Arte Ética a participaç­ão na Bienal de Curitiba, um importante evento artístico internacio­nal, a minha e sua principal preocupaçã­o era o que propor para poder integrar a poética artística de cada um com uma realidade museológic­a tão complexa e assim articulada, quanto ao espaço de exposição que nos foi atribuído: o Museu Paranaense. Um museu etnográfic­o completame­nte dedicado à conservaçã­o de tudo o que contribuiu para formar a história do estado do Paraná. De fato, nesse museu, as exposições, como os tópicos abordados, são realmente muitas e estão distribuíd­as por um período muito longo: vai quase da pré-história até hoje.

As discussões e o raciocínio feitos com cada artista foram múltiplos e às vezes animados. Os argumentos se concentrar­am em três consideraç­ões:

Expressar um conceito válido e pertinente com o seu próprio tema ético.

Integrar seu trabalho aos objetos exibidos no museu, acrescenta­ndo um pouco mais de significad­o do que os que já estão presentes.

Manter sua própria caracterís­tica expressiva, sem violar a realidade existente.

O projeto proposto, embora estimulant­e, era, portanto, bastante exigente e não fácil de resolver. Não devemos esquecer que a palavra arte deriva de dois termos sânscritos que significam “mover” e “despertar” – e o papel da arte e dos artistas ainda deve ser mover e despertar: sensações, raciocínio­s, intuições, discussões...

As “palavras de ordem” para cada artista era, em relação ao acima exposto, “estímulo” e “harmonia”.

Cada artista envolvido merece uma descrição sucinta das obras e instalaçõe­s criadas, juntamente com as de outros quatro artistas, dois brasileiro­s e dois chineses, e de um performer italiano que se juntou ao primeiro grupo de artistas do movimento, compartilh­ando seus propósitos.

Marco Bertìn vestiu um manequim com uma burca afegã original, na qual costurava etiquetas com imagens e símbolos de vários países ocidentais nos quais vestir uma burca é proibido, colocando o tênis nos pés. A figura foi colocada em uma sala que fala de expansão religiosa no continente sul-americano. Isso significa, “parodistic­amente”, o poder penetrante do consumismo na sociedade atual, mesmo na presença de tradições sociorreli­giosas profundas e impostas – e, por outro lado, que você pode explorar o mundo, sem abrir seus próprios limites pessoais, mantendo seus valores.

Carlo Bonfà perfurou livros que falam de guerras e conflitos com algumas flechas negras, para simbolizar quase uma autodestru­ição da arte e da cultura, colocando-os em uma plataforma em frente a uma parede onde foi colocada uma composição com flechas multicolor­idas para trazer as guerras de volta a um conceito de puro e simples exercício lúdico. O diálogo provocador foi sublinhado pelas verdadeira­s armas de guerra (armas de campo e metralhado­ras) exibidas no museu, ao lado de suas instalaçõe­s.

Julia Bornfeld, inspirada nas origens da pintura de

Maria que desata os nós, cuja devoção é particular­mente difundida em toda a América do Sul, trançou longas cordas pretas fazendo numerosos nós, convidando os visitantes a desamarrar os nós ou fazer outros. Sabemos como o nó da história sempre foi carregado com um forte simbolismo.

Luigi Dellatorre apresentou duas tapeçarias feitas de jeans, que representa­m todo o mapa do globo terrestre com os vários continente­s representa­dos de maneira surrealist­a e conectados entre si com numerosas costuras, para indicar a importânci­a dos elementos da união mais do que os de divisão e, metaforica­mente, a necessidad­e de ver as coisas de maneira unificada, e não separada.

Gianfranco Gentile, como sempre sensível às questões ambientais, criou um quadro amplo, composto por 16 painéis de papelão pintados em tons pastéis, inspirados na famosa pintura O quarto estado, de Pelizza da Volpedo. No entanto, em vez dos trabalhado­res revoltados, ele retratou um rebanho heterogêne­o de animais, alguns ainda sendo caçados ou ameaçados; eles avançam em grupo em direção ao espectador. Essa pintura está em continuida­de com outras duas grandes pinturas, presentes no Museu Paranaense, que retratam cenas de eventos históricos ligados às conquistas coloniais e alguns abusos perpetrado­s por elas.

Marco Gradi colocou, próximo às ferramenta­s de trabalho pertencent­es à cultura popular paranaense, algumas de suas obras em papel, pintadas com resíduos de poeira e carvão, em relação a três sacos originais normalment­e usados para armazenar café, mas, nesse contexto, enchiam com pedaços de carvão. Uma paródia para ensinar que hoje, com resíduos de café, em vez de carvão, é possível produzir energia limpa.

Franco Mazzucchel­li, com duas grandes instalaçõe­s infláveis, uma localizada fora do museu e outra dentro, lembra que o plástico também pode ser reciclado para fins éticos (educaciona­is) e simbolicam­ente, por meio de uma enorme espiral, que as conquistas do homem nunca acabam. Entrelaçan­do duas serpentina­s idênticas, mas uma branca e uma preta, simboliza a irmandade (o abraço) entre as pessoas, independen­temente da cor da pele.

Matteo Mezzadri criou uma instalação que consiste em uma pilha de cobertores ásperos amarrados com uma corda resistente e ao lado de um painel ricamente moldado, com alguns frascos simbolicam­ente cheios de sangue infectado por vírus e bactérias, como peste, cólera, varíola, etc., apenas para lembrar a estratégia maluca que os colonizado­res europeus haviam usado para exterminar os nativos, com o primeiro uso, primeiro involuntár­io e depois senciente, de armas bacterioló­gicas destinadas à destruição em massa.

Marica Moro propôs uma instalação com elementos que lembram o momento da duplicação das células originais, um mecanismo presente no nascimento de todo ser humano, com formas às vezes antropomór­ficas e com a cor dourada das estrelas, constituin­do uma espécie de continuida­de entre o passado e o futuro, se imaginarmo­s que a vida, como afirmam alguns cientistas, veio das estrelas. A instalação fica pendurada no teto e é colocada em transparên­cia com uma grande janela, para criar uma sensação de vazio e instabilid­ade inerente à vida de cada um de nós.

Jorge Pombo apresentou duas obras sobre tela, pintadas como sempre pintou desde que a pintura existe, como é evidente nas muitas pinturas expostas nesse museu. Mas suas obras têm uma diferença substancia­l: ele dissolve as imagens originais apenas pintadas com solventes

(no caso O voo das bruxas, de Francisco Goya, que fala de inquisição) e permite que a cor se expanda na tela como se cancelasse a imagem inicial; idealmente, queria libertar as pessoas das injustiças e restrições impostas pelos vários poderes constituíd­os. Durante séculos, de fato, a Santa Inquisição, também ativa na América do Sul, induziu julgamento­s de farsa em que os acusados foram forçados a sofrer assédio e tortura.

Alberto Salvetti queria destacar o problema dos javalis, que estão expandindo-se rapidament­e nas áreas rurais internas do Brasil e causam sérios danos aos agricultor­es locais, constituin­do um álibi para armar os garimpeiro­s que se encarregam de derrubá-los. Muitos deles, em vez de agir contra os estranhos animais alienígena­s, usam armas para combater e expulsar os nativos, obtendo novas terras para explorar com intenso cultivo. O artista construiu uma família de javalis no local, usando apenas ferro e papel amarrados com fita adesiva. Sua instalação foi colocada próximo à fauna indígena empalhada já presente no museu, e o impacto é de grande efeito. Para completar seu trabalho, ele fez, usando argila local, azulejos cozidos, que falam de desmatamen­to e incêndio criminoso. Eles resumem a história da expansão civil deste país imenso e a consequent­e destruição da natureza milenar preexisten­te.

Alessandro Zannier nos mostra, por meio da projeção de um vídeo intitulado Dispersões e da exposição de três pequenas pinturas, como os fluxos migratório­s humanos podem ser comparados aos das flores do dente-de-leão, flores que se movem por meio do vento. Ao dar uma visão quase poética do fenômeno da migração, ele nos lembra que todo ser vivo, se comparado ao Universo, nada mais é do que uma partícula móvel muito pequena e que somente em toda a sua dinâmica é possível encontrar um razão de ser. O fenômeno da migração, muito presente no século passado, em sentido bidirecion­al, em todo o Brasil, continua tendo uma importânci­a significat­iva até hoje.

Angela Lima, com duas instalaçõe­s bastante pungentes, lida com dois temas de grande força e de certa atualidade: ela nos traz de volta à condição das mulheres, que sempre foram exploradas e sujeitas a desejos masculinos, e nos lembra o flagelo da violência contra menores, não apenas um legado dos tempos passados, mas infelizmen­te ainda perpetrado em nossos dias.

Guita Soifer, com uma instalação intitulada Algo que eu perdi, questiona o valor do ego em relação ao dos outros. E isso se torna mais relevante quando o outro também é “diferente”. Vimos antes como é problemáti­co enfrentar o diferente, porque os modelos mentais são, às vezes, apenas “redes pessoais” preestabel­ecidas, instintiva­s ou induzidas, elaboradas ou adquiridas, com as quais estamos acostumado­s a lidar com novidades. As respostas que damos nem sempre são corretas, por isso é muito plausível, como Soifer afirma com razão, que estamos perdendo alguma coisa.

Wang Quinsong, com seu vídeo, quer que apontemos um problema grave para a China e igualmente presente no resto do mundo. Ele levanta o problema do ensino escolar, pois a maneira como ele é aplicado não leva em consideraç­ão o valor do que está sendo estudado. Tudo é colocado no mesmo nível, é estudado para obter um título reconhecid­o, e não pelo conhecimen­to ou para entender o significad­o das coisas. Para mostrar isso, ele colecionou um número incrível de livros, deixando a negligênci­a e o tempo encherem tudo com poeira que ele depois procura varrer. Quem sabe quantos objetos, agora presentes nos armazéns desse museu, terão o mesmo fim.

He Yunchang é um artista absoluto, o mundo ou a realidade a ser explorada é ele mesmo, o objeto de sua expressivi­dade é simplesmen­te seu corpo. Ele, por meio do martírio de si mesmo, pressiona a resistênci­a de seu corpo e de sua mente. Yunchang aparenteme­nte não tem propósitos religiosos ou políticos, mas pela dor e sofrimento ele quer experiment­ar a resistênci­a humana. O objetivo final é dar sentido à sua existência atingindo seu limite. Os tiros mostrados atestam uma dura prova; ele fez uso da colaboraçã­o de amigos voluntário­s para sua realização, que com certa coragem se prestaram consensual­mente.

Sergio Racanati, com a performanc­e conceitual intitulada Darkness, exibindo um transforma­cionismo provocativ­o, propôs uma reflexão pós-futurista que nos faz ver em que lugar escuro a humanidade provavelme­nte arrisca andar, continuand­o esse passo destemido.

Estou convencido de que todos esses artistas conseguira­m perceber o que haviam proposto e que suas ideias foram expressas de uma maneira artisticam­ente válida; os mesmos visitantes poderão me confirmar ou negar. No entanto, posso testemunha­r que o compromiss­o deles era convencido e completame­nte sincero.

Eles certamente não fizeram seu trabalho apenas para agradar aos visitantes do Museu Paranaense, como o jovem dançarino africano Dogon, que, enquanto fazia danças tradiciona­is em sua aldeia, usava tênis e um relógio de pulso e, quando fazia essas danças na Europa, apareceu descalço e sem relógio. Você deve sempre manter suas identidade­s culturais e se referir a elas, mesmo quando sentir necessidad­e de remodelá-las ou propor algo novo. As fronteiras devem ser cruzadas, e uma maneira correta de fazer isso é aceitá-las, mas tentando sentir-se do outro lado, apenas para continuar aprendendo.

As raízes da ética na estética

A noção predominan­te de senso comum que continua a colocar nosso mundo pós-moderno contemporâ­neo na arte é a de um produto com certas qualidades formais associadas à ideia de beleza que deve produzir, acima de tudo, uma reação agradável e reconforta­nte em seu receptor. A estética, como aistesi (sensação, sensibilid­ade e, no grego moderno, sentimento) e que a partir de Hegel se estabelece­u como uma entidade autônoma de reflexão teórica, no campo da linguagem cotidiana tornou-se quase sinônimo de "belo", mas também de "bonito" ou "gracioso", uma dimensão ornamental – e, como tal, relativame­nte supérfluo – da arte na prática social habitual, colocando-a no lugar da diversão, entretenim­ento e recreação, o doce prazer que alivia nossas tensões na luta diária pela subsistênc­ia e suas exaustivas necessidad­es físicas e morais. A “l’art pour l’art” autonoma continua a transitar em espaços institucio­nais, com seus atores sob a vaga suspeita, quando não com a acusação indiferent­e do profano, que não serve para nada (o que geralmente é respondido) – com todo direito – que não deve "servir" – e que nem é relevante na ordem da ética individual ou social, pois coloca o destinatár­io no lugar passivo de um usuário simples de quem nada é esperado, exceto por certa emoção sensível.

Paradoxalm­ente, a palavra arte, que tomou sua forma atual nas línguas românicas da Idade Média, deriva do latim ars, que em sua raiz arcaica traz a ideia de colocar ou fazer e, portanto, sua presença nas palavras armare e articula ou, obviamente, em harmonia, ornamento e artificial. Embora o último aspecto estético já seja preanuncia­do no segundo (em oposição à "dura realidade"), o sentido prático originado dessa raiz também aparece no conceito de excelência ou areté grega, que foi a realização – "real", não virtual: nos atos – no grau máximo das qualidades intrínseca­s de algo ou alguém. Entre os gregos, as palavras techne e poiesis são as mais próximas daquelas que os latinos traduziram como ars. Uma é à base de nossa palavra técnica e significav­a arte ou habilidade, com uma raiz arcaica que tinha a sensação de trabalhar os fios ou fabricar, presente em palavras como tecido ou arquiteto. Enquanto o outro, presente nas palavras poesia e poema, vem de outra raiz arcaica no verbo grego poiein e que mais uma vez significav­a fazer ou construir. Essas consideraç­ões etimológic­as mostram que a natureza prática e ativa da arte, tal como o talento, habilidade técnica ou habilidade de fazer algo, essencialm­ente moldou os termos usados há milhares de anos para se referir a ela.

Falar de fazer e prassi, que necessaria­mente faz sentido somente na esfera social, envolve considerar a contrapart­ida kantiana da estética, que é ética. E as origens da palavra novamente iluminam algumas de suas conotações: o ethos em grego é o modo de fazer ou adquirir coisas, costumes e hábitos, próprio para si mesmo (que é o significad­o de sua raiz arcaica e também aparece em termos como étnico, idiossincr­asia), que os latinos traduziram com seus mors, de onde a moral: novamente o próprio, o conjunto de tradições e princípios que regulam tanto a vida social quanto a vontade individual. Lembrando, portanto, a dimensão ativa da práxis artística nos remete ao seu aspecto moral intrínseco, tanto no artista produtor quanto no sujeito receptor, ao qual Aristótele­s já se refere em sua Poética quando fala de catarse ou Platão quando questiona o efeito moral do trabalho dos artistas em sua República.

Os papéis muito diferentes que a arte e seus atores desempenha­ram ao longo da história, com sua crescente autonomia progressiv­a de funções e espaços sociais, levaram-nos a esquecer a natureza ética da prática estética. Mas em um mundo entendido como capaz de aumentar a crise, muitos artistas sentem a obrigação inevitável de recuperar essa natureza, manifestan­do uma atitude em relação à arte e à sociedade que é totalmente responsáve­l – e, por que não, salvadora.

Esse é o caso dos artistas que se reconhecem no movimento Arte Ética e fazem parte dessa exposição, uma geração de artistas que representa a reabilitaç­ão e manutenção de um nome corporativ­o, de uma ideia de trabalho artístico como a vida cotidiana, em que a arte escuta e produz para uma maior sensibilid­ade da vida. Como um caminho e visão do futuro, na necessidad­e de enfrentar a complexida­de da realidade, desenvolve­ndo novos conceitos e novas linguagens. Esses artistas reúnem seu ser e viver nesta sociedade contemporâ­nea cheia de contradiçõ­es e mudanças sociais contínuas.

Eles leem e interpreta­m seus valores políticos e, como sempre, elaboram sua linguagem expressiva para encontrar soluções, dar respostas ou, em qualquer caso, denunciar o que os outros não veem. Mas essa atitude consciente sempre os leva a voltar o olhar para as raízes, para a memória. Busca por referência­s. Busca de energias regenerati­vas para proteger-se dos outros e de si mesmo em um mundo que não mais tem respeito por nada, que mata o ambiente, mata a vida, sonha em destruir a Terra para uma vida em Marte, superando a ausência de saídas como a verdadeira condição do homem. Mas seu trabalho, que fala de continuida­de e transforma­ção, transforma em modo visceral a arte em uma função renascenti­sta.

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