A arte é vista como ‘instrumento do demônio’, critica
Grande Otelo e Mesquitinha, e nos teatros da Cinelândia, como Dulcina de Moraes e Bibi Ferreira. Também pelas primeiras companhias amadoras, como o Teatro de Estudante, a cujo “Hamlet” de 1948, com Sérgio Cardoso, ela assistiu 18 vezes.
A certa altura, comenta sobre si mesma: “Troquei de pele durante 70 anos. Nunca tive meu próprio rosto nem postura”. E cita um verso de Cecília Meirelles: “Em que espelho ficou perdida a minha face?”.
O livro narra passagens como o protagonismo alcançado a partir de “A Moratória”, dirigida pelo italiano Gianni Ratto, peça que “mudou o curso da minha vida”, e os primeiros aplausos em cena aberta com “O Mambembe”, também de Ratto.
Não faltam momentos difíceis, inclusive no teatro, como ouvir de um dos líderes do Arena que ela era bem-vinda, mas seus colegas homossexuais, não. Ou os anos de dívidas acumuladas junto ao Banco Nacional para produzir suas peças.
O livro termina com o registro satisfeito de que, aos quase 90, “ainda dou conta do meu ofício”, em “Nelson Rodrigues por Ele Mesmo”, solo que traz a São Paulo no ano que vem. “Tudo vai se harmonizando para a despedida inevitável”, escreve ela, no último parágrafo. “Mas, acordo e canto.” (Folha)
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‘A Morta sem Espelho’ ‘Guerra dos Sexos’ ‘O Outro Lado do Paraíso’
No livro, Fernanda Montenegro não aborda política hoje. Mas discorre sobre a importância das leis trabalhistas de Getúlio Vargas para a sua família ou então sobre a campanha das Diretas Já.
Recorda também sua reação pública às decisões do presidente Fernando Collor, como fechar o Ministério da Cultura. “Sempre sobra cobrança sórdida, hostil, sobre os atores”, escreve na autobiografia.
Questionada se vê o mesmo acontecer com Jair Bolsonaro, ela desabafa: “Agora é pior. Antes era só político, agora é também moral, por razões de comportamento. ‘Teatro é o espaço do demônio!’ É isso”.
Antes, a cultura das artes era dada como “inútil”, era perda de tempo diante de “tanta carência do país”. Agora a arte se tornou “pecaminosa, há uma moralidade que acaba em cima de quem? Do ‘instrumento do demônio’, que é o ator, o que aceita ser o outro”.
Explica: “Somos perigosos porque nos aceitamos diversos. Nossa característica é sermos abertos a tudo, o melhor do humano e o pior do humano. Isso não é tolerado. Ainda mais na condição de atriz”. E agora o que se enfrenta é “o ponto de vista de uma religião, seita, que tem lá seus princípios. Isso está no poder”.
A atriz chegou a ser chamada para ministra da Cultura e foi quem viabilizou o nome de Celso Furtado para o cargo, no governo José Sarney. Sua referência persistente é a Constituição de 1988, que credita a Ulysses Guimarães. Instada a sugerir uma resposta à crise institucional no país, ela responde de bate-pronto que é preciso retornar à Constituição de Ulysses. (Folha)