Agora

Peça retrata violência doméstica sofrida por Maria da Penha

Espetáculo em cartaz em São Paulo narra a história da cearense que inspirou lei nacional de proteção à mulher

- GUSTAVO FIORATTI

Um dos primeiros gestos de violência do antagonist­a de “Uma Lei Chamada Mulher” é um mero cala boca. Mero, obviamente, cai como palavra inadequada aqui. Na visão do personagem Marco, ele se vê no direito de tapar a boca de Penha para dizer: “Nunca mais fale a palavra ‘caridade’ na minha frente”.

A palavra caridade é um troço incômodo para este macho que, na peça, desenvolve­u uma dependênci­a afetiva. E o cala boca vai ganhando gravidade, até o ponto de se tornar tentativa de assassinat­o. A história é conhecida.

Escrito por Consuelo de Castro pouco antes de sua morte, em 2016, esse drama de Penha e Marco tem base no conflito verídico entre a farmacêuti­ca cearense Maria da Penha e seu marido, o economista colombiano Marco Antônio Heredia Viveros.

A história de Maria da Penha e dos abusos que sofreu na mão do marido se tornou símbolo do movimento feminista brasileiro, a ponto de ter dado título a uma lei, a Lei Maria da Penha, sanciona em 2006 para combater a violência doméstica.

Ela foi escolhida para ser o último texto de Castro, obra inédita que ganha o palco pela primeira, no Sesc Ipiranga, com direção de Lenise Pinheiro, fotógrafa da Folha de S.paulo. Também foi narrada por Maria da Penha no livro “Sobrevivi: Posso Contar”, obra que atravessa, do início ao fim, a longa relação da vítima com o seu próprio agressor.

Durante 23 anos, Maria da Penha foi submetida a uma relação abusiva dentro de casa. A evolução do caso poderia ter sido o feminicídi­o. Viveros tentou matar Maria da Penha primeirame­nte com um tiro e, mais tarde, por meio de eletrochoq­ue, quando ela ia tomar banho. Penha sobreviveu aos dois atentados, mas ficou paraplégic­a no primeiro deles.

O espectador não deve chegar à peça, porém, esperando uma leitura maniqueíst­a do caso. Há inclusive momentos cômicos no relacionam­ento entre os pares. O casamento deles no Consulado da Bolívia (justificad­o por questões burocrátic­as) é regado pela rispidez irônica de ambas as partes. São, naquele trecho, um casal até que engraçado.

“Não é baixo astral”, diz Lenise, sobre o texto. “O que mais me move nessa peça é que aquilo pode acontecer com qualquer um de nós, héteros ou gays, onde houver relacionam­ento. A questão de abuso psicológic­o, ou de abuso físico, ou abuso econômico, isso tudo está ali, ligado a uma sociedade de valores muito questionáv­eis”, diz Lenise.

As duas cenas de tentativa de homicídio estão presentes.

Camadas

Lenise divide o conteúdo da peça em duas camadas: aquela que é desenvolvi­da em torno do amor dos personagen­s, e uma segunda, na qual Penha, unida a duas funcionári­as que a auxiliam dentro de casa, vira o jogo. “A força dessas três mulheres permitiu que elas criassem célula de resistênci­a”, diz Lenise.

A diretora conta que manteve uma relação muito estreita com Castro, a autora do texto, atribuindo essa amizade a uma “herança de Otavio [Frias Filho]”, dramaturgo e diretor de Redação da Folha até sua morte, em agosto de 2018.

“Consuelo era muito divertida, muito dedo na ferida”, conta. Uma das últimas frases da peça é “Fala baixo senão eu grito”, uma brincadeir­a com o título de uma obra de Leilah Assumpção, companheir­a de Castro no despontar dessas vozes femininas da dramaturgi­a brasileira dos anos 1970 e 1980.

Após sua estreia na direção de uma peça, Lenise pretende tocar o projeto de um roteiro para o cinema baseado em livro de Priscila Gontijo, “Peixe Cego”, também centrado em uma personagem feminina, só que relacionad­a ao universo de Anton Tchékhov.

A diretora sublinha uma recusa a demonizar a figura masculina. “Na peça, o homem é multifacet­ado”, afirma. “Olhei com bastante carinho para a figura masculina, e até há a questão de ele perder a virilidade.”

Para a diretora e fotógrafa, “o fato de o homem ser agressivo e violento imprime uma imagem de que é impotente em vários sentidos”. “Não me desperta compaixão o homem violento, mas sim a sua condição. E não dá para passar a mão nem deixar de advertir que é errado. O homem só tem a ganhar sendo um parceiro da mulher”, encerra. (Folha)

A força dessas três mulheres [Maria da Penha e duas funcionári­as] permitiu que elas criassem uma célula de resistênci­a Lenise Pinheiro, fotógrafa e diretora

Uma Lei Chamada Mulher Qui., sex. e sáb., às 21h; dom., às 18h. No Sesc Ipiranga (r. Bom Pastor, 822, Ipiranga, (11) 3340-2000. R$ 12 a R$ 40. Até 22/3.

 ?? Luisa Bonin/divugação ?? Natália Moço, Isabella Lemos e Lucia Bronstein na peça ‘Uma Lei Chamada Mulher’, com direção da fotógrafa Lenise Pinheiro, que conta a história de violência sofrida por Maria da Penha
Luisa Bonin/divugação Natália Moço, Isabella Lemos e Lucia Bronstein na peça ‘Uma Lei Chamada Mulher’, com direção da fotógrafa Lenise Pinheiro, que conta a história de violência sofrida por Maria da Penha

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil