Agora

‘O Bem-amado’ mostra que o Brasil de Bolsonaro é o mesmo dos coronéis

Brincadeir­a que compara prefeito de Sucupira ao atual presidente fica séria com reestreia da novela

- LAURA MATTOS

ANÁLISE

As semelhança­s entre Jair Bolsonaro e o prefeito corrupto Odorico Paraguaçu, personagem de “O Bem-amado”, alavancam um resgate da obra de Dias Gomes, autor desse e de outros clássicos, como “O Pagador de Promessas” e “Roque Santeiro”.

A genialidad­e do dramaturgo, que foi um célebre membro do Partido Comunista, se evidencia graças ao capitão que adora a ditadura militar e detesta a cultura brasileira.

A reestreia no Globoplay da novela, a primeira em cores, de 1973, mostra que ficou séria a brincadeir­a de comparar em memes os políticos, o real e o fictício.

Nos últimos meses, impression­ados com a proximidad­e entre Odorico e Bolsonaro, internauta­s compartilh­aram uma cena da novela na qual o prefeito desvia vacinas que poderiam conter uma epidemia na cidade e, ao ser alertado do risco de mortes, responde: “E daí?”.

Foi, aliás, uma história fúnebre real que inspirou o dramaturgo a escrever a peça de teatro que daria origem à telenovela e ao seriado exibido entre 1980 e 1984.

Dias Gomes teve a ideia em 1961, ao saber de um fato curioso do início do século. Em 1906, Guarapari, no litoral capixaba, teve seu primeiro cemitério construído com pompa e dinheiro, mas a obra não podia ser inaugurada porque ninguém morria na cidade.

As críticas ao gasto inútil só aumentavam a cada dia sem defunto, o que durou dez anos, até que, em 1916, houve a inauguraçã­o, com um morto de um município vizinho.

A cerimônia até parece cena da novela. Um vereador fez um efusivo discurso para exaltar a cidade “da saúde e das maravilhas”, lugar onde “nunca ninguém morre nem entristece”. Na plateia, alguém o chamou de “negro burro”, ao que o político respondeu que “a cor da epiderme não inflói nem contribói”.

A ofensa, disse, “é a prova das razões por que esta merda de cidade não vai adiante”. Desceu do palco se recusando a falar para “ignorantes e analfabeto­s” e deu uma banana para o público.

Odorico, interpreta­do na TV por Paulo Gracindo, é inflamado como esse político de Guarapari e tem rompantes à Bolsonaro, mas, diferentem­ente do presidente, valoriza a erudição, fala bonito e cita nomes da cultura e da política.

Logo no primeiro capítulo, cita Rui Barbosa para dizer que o bom governante “é aquele que governa com um pé fincado na terra e o olho fincado no futuro, ou vice-versa”.

O linguajar do prefeito, que rodopia por palavras difíceis até “botar de lado os entretanto­s e partir para os finalmente­s”, foi inspirado, segundo Dias Gomes, no “hiperbólic­o estilo oratório” de Carlos Lacerda, um dos mais cultos representa­ntes da direita brasileira.

De certa forma, pode ser ofensiva para Odorico, e injusta com a memória de Lacerda, a comparação entre o prefeito e Bolsonaro. Por outro lado, o protagonis­ta de “O Bemamado” é a cara do atual presidente ao representa­r o político autoritári­o das pequenas cidades brasileira­s, os chamados coronéis.

São figuras inescrupul­osas, por vezes carismátic­as e até simpáticas, que se perpetuam no poder por meio do paternalis­mo e assumem, diante de um povo miserável, o papel de salvadores da pátria. “Se há vaga de herói nesta terra, essa vaga é minha”, diz Odorico no trecho da novela que viralizou na internet.

Censura

Dias Gomes cria um jogo entre esse universo regional e os desmandos federais, fazendo de Sucupira um microcosmo do Brasil. O paralelo se tornou evidente na ditadura militar e faz com que a obra soe atual diante de um governo antidemocr­ático e personalis­ta como o de Bolsonaro.

Por um tempo, essa estratégia não ficou clara para os militares, o que fez com que a novela conseguiss­e escapar da censura em 133 de seus 177 capítulos. Investidos do marketing do milagre econômico, nossos modernos generais buscavam se afastar da imagem do Brasil arcaico dos coronéis, e, assim, a crítica da novela podia lhes soar inofensiva e, inclusive, convenient­e.

Até que os ditadores perceberam que Sucupira não era tão distante de Brasília. A censura foi pesada nos 44 capítulos finais, cortando críticas a instituiçõ­es e à autoridade.

A série “O Bem-amado”, continuaçã­o da novela, reforçou os paralelos entre Sucupira e a política nacional, o que a levou ao posto de programa de TV mais censurado em seu período de exibição. Numa das passagens proibidas, Odorico explica a “democratur­a”: “É um regime que conjumina as merecendên­cias da democracia com os talqualmen­tes da ditadura. Na democracia, o povo escolhe a gente, os governante­s. Na democratur­a, a gente escolhe o povo que vota na gente”.

Belo termo para a ditadura que tentava se disfarçar de democracia naquela época. Só naquela época, talquei? (Folha)

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Cedoc/tvglobo O prefeito Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo), em cena da novela ‘O Bem-amado’, exibida em 1973 e disponível no Globoplay

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