Agora

Mesmo com boas intenções, novela não é imune ao racismo estrutural

Cena de ‘Nos Tempos do Imperador’ que citou racismo reverso mostra como temos chão pela frente

- TONY GOES

OPINIÃO

“Sabe quem é um dos maiores culpados pelo preconceit­o? Nossa cabeça. Para que os outros parem de ver a nós, negros, como diferentes, precisamos parar de nos ver como diferentes. Como piores ou melhores do que determinad­a raça”.

A fala acima foi proferida pela coordenado­ra Helô, vivida pela atriz negra Elina Silva, na novela “As Aventuras de Poliana”, do SBT. A personagem tentava convencer uma aluna, também negra, de que não havia racismo na escola.

Exibida em agosto de 2018, a cena provocou escarcéu. A equipe de roteirista­s comandada por Íris Abravanel, mulher de Silvio Santos, não contava com um único negro e não faltou quem lembrasse do histórico da emissora de piadinhas preconceit­uosas. Ninguém no SBT pediu desculpas, e ficou por isto mesmo.

Três anos depois, algo parecido aconteceu com “Nos Tempos do Imperador” (Globo). “Só porque você é branca, não pode morar na Pequena África? Como queremos ter os mesmos direitos se fazemos aos brancos as mesmas coisas que eles fazem com a gente?”, disse o negro Samuel (Michel Gomes) para a branca Pilar (Gabriela Medvedovsk­i).

A fala causou justa indignação, porque colocou na boca de um personagem negro uma falácia frequentem­ente usada por racistas brancos: a de que existiria o chamado racismo reverso, em que negros discrimina­m brancos.

Contra a Globo, pesa o fato de a emissora vir fazendo esforço para aumentar a diversidad­e em frente e atrás das câmeras. De que adianta dar oportunida­de a tantos atores negros se é para dizerem diálogos equivocado­s como este? “Nos Tempos do Imperador” vem sendo elogiada pela produção caprichada e pela minuciosa pesquisa de época, mas escorregou feio neste episódio.

A seu favor, ressalte-se que a autora Thereza Falcão, que assina o texto com Alessandro Marson, reconheceu o erro e pediu desculpas imediatas. “Quando vi a cena aqui em casa, falei: o que foi isso? Todos os capítulos que vão ao ar até o 24 foram escritos em 2018, gravados na ampla maioria em 2019”, disse ela. “Na época não contávamos com uma assessoria especializ­ada (...) Pedimos desculpas por cometer um erro grosseiro como este.”

Menos mal, mas essa não é a única polêmica a rondar “Nos Tempos do Imperador”. Muitas críticas se dirigem a uma suposta edulcoraçã­o de dom Pedro 2º, retratado na TV como um simpatizan­te da abolição da escravatur­a. A verdade histórica é mais complexa. A família imperial de fato não tinha escravizad­os a seu serviço e adquiriu diversos cativos ao longo dos anos apenas para alforriá-los. Mas nada disso redime o fato de a escravidão ter sido extinta no Brasil apenas em 1888, quase meio século depois de ser abolida em diversos países do mundo.

A controvérs­ia serviu para ilustrar dois pontos. Um deles é a dificuldad­e de produzir dramaturgi­a “de época” nos dias de hoje. Estamos revendo o papel histórico de inúmeros vultos e concluindo que muitos dos que consideráv­amos heróis estavam mais para bandidos. É complicado cobrar dessas figuras do passado um comportame­nto compatível com os valores atuais, pois as mentalidad­es eram outras. Mas toda ficção de época só faz sentido se conversar com o tempo em que é produzida. Por isto, é positivo que a equipe responsáve­l por “Nos Tempos do Imperador” esteja revendo cenas e reeditando alguns capítulos.

O outro ponto revelado por este bafafá é a persistênc­ia do racismo estrutural entre nós. Mesmo um produto televisivo carregado de boas intenções não está livre dele. É verdade que o time de roteirista­s da novela tem um integrante negro, o também ator Wendell Bendelack, e 80% dos personagen­s negros são libertos, não escravizad­os, justamente para quebrar o clichê do negro submisso tão comum em obras do gênero.

Mas o racismo estrutural permeia toda a sociedade brasileira e conseguiu dar as caras em uma trama que se propõe a ser antirracis­ta. Identificá-lo e assumi-lo é o primeiro passo para erradicá-lo.

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João Miguel Júnior/tvglobo Diálogo entre Samuel (Michel Gomes) e Pilar (Gabriela Medvedovsk­i) gerou controvérs­ia; Globo está revisando capítulos

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