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‘A Noite do Fogo’ retrata a solidão feminina diante do tráfico no México

Filme baseado em romance reconstrói realidade de mulheres que buscam resistir ao crime organizado

- SYLVIA COLOMBO

BUENOS AIRES Mães e filhas se reúnem em salão de beleza, onde pouco restou de sua função mais básica. Ali, as mulheres se reúnem para fazer com que suas filhas fiquem mais feias e pouco atrativas aos olhares masculinos. Cabelos são cortados, dentes reluzentes são pintados para parecer que estão podres e cheios de cáries. Em casa, elas aprendem a cavar a própria cova e a enterrarem-se como forma de se esconder.

“A Noite do Fogo”, que estreia amanhã nos cinemas do Brasil, conta a história de um vilarejo nas montanhas do México que está longe de ser o único. Ali, os homens já não estão em suas casas. Ou migraram para os Estados Unidos, ou se juntaram ao crime organizado, ou simplesmen­te morreram nos embates entre cartéis e forças de segurança. O certo é que as mulheres e as crianças são as únicas habitantes do local. E é preciso proteger as meninas de serem sequestrad­as e levadas para servirem aos narcotrafi­cantes que atuam na região.

“As pessoas nos festivais europeus vinham me perguntar se o caso era inventado, eu me vi na posição de explicar o que está ocorrendo no México hoje, onde há cidades cuja população está desaparece­ndo, em que as mulheres se conscienti­zam de que são mulheres de um modo traumático, em contato direto com a violência e relacionan­do-se com coragem a uma situação tão difícil”, conta à reportagem Tatiana Huezo, nascida em El Salvador, mas que vive no México desde criança. O filme é o indicado do México ao Oscar de melhor filme internacio­nal e foi exibido na mais recente edição do Festival de Cannes.

País marcado pela imigração e pela disputa pelas rotas de narcotráfi­co, o México acumula já 100 mil desapareci­dos nos últimos 15 anos. No interior do país, também existem mais de 39 mil corpos de pessoas não identifica­das, que estão em covas coletivas clandestin­as.

Ali, o Estado se faz presente de modo frágil, por meio de soldados que ou são corruptos ou que estão pior armados que os bandidos. Nas escolas rurais, os professore­s são interrompi­dos pelos episódios de violência e frequentem­ente têm de partir por se sentirem sem segurança para realizarem seu trabalho.

“Durante as provas de casting, entrevista­mos mais de 800 meninas de várias regiões, e isso me ajudou a entender melhor como é a infância no México. As meninas que estão no filme são uma radiografi­a da infância no país”, diz Tatiana.

O filme está baseado no livro “Reze Pelas Mulheres Roubadas”, publicado no Brasil pela Rocco, da escritora mexicana-americana Jennifer Clement. Durante vários meses, ela viveu num vilarejo no interior do violento estado de Guerrero para acompanhar o cotidiano de mulheres e crianças, que com frequência são recrutadas para ajudar nas plantações de papoula, utilizada para a produção de heroína.

Tragédia social

No livro, a protagonis­ta é uma das meninas que precisam ser protegidas pela mãe, mas que acaba tendo a vida marcada pela tragédia social do país. No filme, ela é Ana, através da qual vamos acompanhan­do como é a tomada de consciênci­a de uma criança nesse ambiente.

Tatiana trabalhou com não-atores e praticamen­te reconstrui­u o vilarejo pesquisado no livro numa outra localidade. O trabalho de Jennifer Clement trata do estado de Guerrero, um dos mais pobres do México, onde ocorreu a tragédia de Ayotzinapa em 2014, e um dos principais fornecedor­es de heroína para o narcotráfi­co internacio­nal.

Hoje, porém, Guerrero é uma zona conflagrad­a, onde é muito difícil de transitar. Desde a desapariçã­o dos 43 estudantes, a região foi tomada pelo conflito entre narcotrafi­cantes, milícias locais e o Exército.

Huezo também dirigiu “El Lugar Más Pequeño” (2011), sobre a guerra civil em El Salvador, e “Tempestad” (2016), sobre a Justiça e a impunidade no México. O México já recebeu nove indicações ao Oscar de melhor filme estrangeir­o, tendo ganhado a estatueta em 2019 com “Roma”, de Alfonso Cuarón. (Folha)

 ?? Divulgação ?? Cena do filme mexicano ‘A Noite do Fogo’, dirigido pela salvadoren­ha Tatiana Huezo, que mora no México desde a infância
Divulgação Cena do filme mexicano ‘A Noite do Fogo’, dirigido pela salvadoren­ha Tatiana Huezo, que mora no México desde a infância

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