Lagosta para os pobres
Não surpreende ninguém a indignação com Wagner Moura comendo camarão num evento dos sem-teto
Oacará só queria camarão. Todos os outros peixes do aquário comiam ração seca em flocos, mas o acará-disco não dava a menor pelota para ela.
Para interromper a greve de fome, minha mãe sugeriu que lhe déssemos camarão. Funcionou.
O acará de paladar fino virou piada na minha casa. O impacto da dieta do peixe no orçamento doméstico era desprezível: ele comia alguns pedacinhos por dia de camarão miúdo, o mais barato.
O camarão como alimento de peixes de aquário é, por sinal, muito comum. Tem até um tipo que você cria num tanquinho à parte, para oferecer vivo aos lebistes e betas de estimação.
É a artêmia, endêmica de lagos salgados continentais. São crustáceos tão pequenos que não dá para examinar um indivíduo a olho nu. Em bando, parecem uma nuvem de mosquitos aquáticos.
Tem camarão em rações de gato. Camarão e atum, quase uma barca de sushi para os bichanos.
Gato persa e peixe de aquário podem comer camarão. Só pobres não podem comer camarão.
Não surpreende ninguém a indignação ante a foto de Wagner Moura comendo camarão num evento dos sem-teto. É só mais um chilique de preconceito e ignorância da elite jeca do Brasil.
Essa turma acha ok dar ração assinada pelo Erick Jacquin para o lulu-da-pomerânia, mas sobe nas tamancas quando uma doméstica compra passagem de avião.
Acha natural celebrar a especulação financeira com uma vaca amarela de fibra de vidro enquanto desempregados reviram o lixo.
Aliás, acha ótimo que a fome tenha feito baixar o custo do trabalho braçal. Tudo bem que a inflação e o câmbio dobraram o preço do vinho: é apenas um percalço na restauração do Brasil dos homens de bem, vamos beber a isso.
Esse pessoal acha que a Bahia é o Quadrado de Trancoso e que acarajé é uma iguaria exótica para festas. Mal sabem que o camarão defumado, mirrado e cascudo que vai no acarajé é vendido pela bacia nas feiras de Salvador.
Camarão é carniceiro, coprófago, parece uma barata que passa a vida nadando em pé. Não sei por que tanto fetiche. Porque a carne é deliciosa, talvez?
Nada irrita mais o tutor de lulu-da-pomerânia do que um pobre se alimentando bem e com gosto. Daí achar um acinte que a refeição servida na ocupação do MTST incluísse camarão.
Um efeito positivo do episódio é a reação contra o absurdo. Uma galera arrecadou doações para promover uma camarãozada (sim, inventei a palavra) numa ocupação do Jardim Iguatemi.
É provocação? Evidente que sim! Que sirvam lagosta para os pobres da próxima vez.
Essa turma acha natural celebrar a especulação financeira com uma vaca amarela de fibra de vidro enquanto desempregados reviram o lixo