Determinação é tudo
Os capítulos deste livro foram dispostos em ordem alfabética e, em cada um deles, o autor vasculha as lembranças, alegrias e dores de um pianista incansável que segue em plena atividade
A letra A
só poderia ser de amor, porque o amor é ou deveria ser o pilar fundamental da existência. A escolha foi fácil. Precisamos dele como do ar para respirar. O amor pelo outro, pelo próximo, pelo nosso ofício. O amor da família, da mãe, dos filhos, da mulher, dos amigos. Isso move o mundo, nos faz acreditar em algo maior. Amemos e sejamos amados. O amor é um bom começo e um bom fim para tudo, é um ótimo primeiro capítulo. Até queria falar mais da natureza do amor, mas só o que sei é que é mais do que um sentimento. O amor pela vida é o único caminho para a felicidade. Vou começar com uma história que acho bastante ilustrativa. Como já disse, quando criança tive problemas de saúde. Tinha convulsões quando era bem pequeno. Depois tive um tumor benigno no pescoço, razão de duas cirurgias que acabaram por unir pai, mãe e irmãos em torno da minha saúde. Esse tumor provocava um vazamento de pus no meu pescoço e acabou por gerar, já naquela época, bullying na escola. Como foi importante o amor da família, com a austeridade e o bom senso do pai, o carinho da mãe e o companheirismo dos irmãos.
Vivíamos num ambiente disciplinado, onde havia horário para tudo e se estimulavam a cultura e o conhecimento. Se minha mãe, Alay, era mais afetuosa, astuta e dedicada, meu pai, José Martins, era um homem inteligente, organizado e de ideias claras. Ambos exigiam uma atitude positiva dos filhos e acreditavam no poder do intelecto. Lembro-me da primeira vez que recebi um conselho do meu pai. Foi bem nessa época da fístula, logo depois de uma cirurgia, que envolveu um longo período pós-operatório, quando ele disse: “O impossível só existe no dicionário dos tolos”. Meu pai era um homem que acreditava no esforço pessoal e na força da fé. Representante da fabricante francesa de aromas Roure-bertrand Fils et Justin Dupont, de Grasse, era um vendedor incrível, e chegou a ser o maior vendedor da empresa em todo o mundo.
Estávamos na segunda metade dos anos 1940, a Segunda Guerra Mundial havia acabado e, junto dela, a ditadura do Estado Novo. De alguma forma vivíamos um período de volta à normalidade. Eram tempos de recuperação econômica e ligeira euforia. A economia crescia e havia uma invasão de carros americanos. Nessa época, meus irmãos e eu estudávamos numa escola chamada Educandário Brasil, que ficava a 500 metros de nossa casa. Certo dia, estava com minha mãe na fila para comprar pão e, ao nosso lado, estava uma vizinha com sua filha, que tinha mais ou menos a minha idade e eu achava linda. Estudávamos na mesma escola e até hoje consigo me lembrar de sua beleza.
Conforme disse, por causa da fístula que me afligia após a cirurgia, sofri muito constrangimento na escola. Na hora do almoço, alguns garotos caçoavam de mim e aquela menina me protegia. Ficava por perto quando eu me sentia triste e dizia palavras de apoio, como se soubesse que era o que eu mais precisava. Por incrível que pareça, ainda criança me apaixonei por ela. Seu interesse por mim, sua sincera disposição de me ver feliz e sua beleza me tocaram. Um amor infantil brotou. Essa amiga demonstrava tanto carinho nos meus momentos de tristeza que eu passei a entender como a palavra amor estava diretamente relacionada à palavra solidariedade.
Em momento algum me senti desamparado naquela minha dor de criança. Lembro-me do carinho da minha mãe, irmãos...
O amor se expressa no cuidado.
“Na hora do almoço,
alguns garotos caçoavam de mim e aquela menina me protegia. Seu interesse por mim, sua sincera disposição de me ver feliz me tocaram. Um amor
infantil brotou”