Romance histórico
A história se passa no final do século XIX no Brasil e trata de questões como sociedade patriarcal, desigualdade social, tráfico de mulheres, escravidão, racismo e violência doméstica
Paris, França, 1877
– Com sua licença, minha senhora. – Levo um susto quando noto que ela está ao meu lado. A camareira sorri para mim e me estende uma caixa que, muito provavelmente, é três vezes maior do que nós duas. – Meu desejo não era interrompê-la, mas o conde pediu que eu lhe entregasse um presente.
Deixo o grafite de lado, limpando minhas mãos em uma toalha úmida, e guardo as partituras em que estive trabalhando ao longo da semana em uma pasta de couro. Tenho dezenas de canções iniciadas, mas apenas duas finalizadas. A verdade é que está cada vez mais difícil transformar minhas emoções em composições – muito provavelmente porque rimar palavras como solidão e dissabor seja uma tarefa desgastante. – Condessa? Volto minha atenção para a jovem e pego o pacote de suas mãos. Simulando interesse, caminho pelo quarto abraçada ao presente, forçando o que imagino ser um sorriso curioso. Alcanço a cama de dossel e, com cuidado, deposito o embrulho em cima do cobertor azul. Preparo-me para amar os presentes enviados pelo conde, mas preciso esconder a repulsa quando retiro a tampa da caixa e toco a pele branca e macia como a neve. Faço uma prece ao imaginar o sofrimento do pobre animal que perdeu a vida para suprir o capricho de alguém. E, depois de alguns instantes sufocantes nos quais tento pensar em como convencer Jardel de que não precisarei do casaco, deixo a pele de lado e retomo minha atuação. Com um sorriso ensaiado, encaro o vestido de gala que deverei usar na noite de amanhã. O corpete e as barras foram decorados com linha de prata. O bordado segue um estilo delicadamente arredondado, que me lembra do movimento das ondas do mar e que faz a peça refletir diante da luz dos lampiões. Ao retirá-lo da caixa e ver as pequenas partículas de diamante que foram presas ao vestido, não preciso fingir surpresa. Sinto que, em outro momento da minha vida, eu o teria amado.
– Impossível não admirar o cuidado do conde. Vossa graça sempre escolhe as peças mais belas – a jovem volta a falar, lembrando-me de que minhas reações são minuciosamente vigiadas.
Mordo a parte interna das bochechas na intenção de provocar um leve rubor. Preciso parecer chocada ao ver que, no fundo da caixa, pequenas peças de renda me encaram. Elas são do mesmo tom do vestido e ainda menores do que as últimas lingeries que meu marido havia comprado. – Pateticamente previsível. – Tenho certeza de que o conde sente prazer ao imaginar meu ultraje, mas a verdade é que suas escolhas não me afetam em nada.
– O que disse, senhora?
Sinto o peso de seus olhos enquanto a jovem avalia minha reação, mas neste instante evito encará-la. Tento ao menos lembrar o seu nome, mas desde que casei tantas empregadas me foram designadas – nos primeiros dias sorridentes e alegres por servirem a condessa, e nos últimos dias tão silenciosas e resignadas – que deixei de me importar em conhecê-las. A única coisa com a qual me preocupo é em desempenhar o papel que esperam de mim. Coloco o vestido em frente ao corpo e imagino a sensação de vesti-lo. A cor prateada pouco surpreende, contudo preciso admitir que o tecido cumpre o objetivo de me agradar. Gosto de como a seda abraça a minha pele e, por alguns momentos ilusórios, afasta minha solidão.
“Mordo a parte interna das bochechas com a intenção de provocar um leve rubor. Preciso parecer chocada ao ver que, no fundo da caixa, pequenas peças de renda me encaram”